A gamificação é uma ótima estratégia para engajar os estudantes e tornar as aulas mais interessantes. Conheça os conceitos por trás dos jogos e como aplicá-los na sala de aula.
A palavra “gamificação” tem se tornado cada vez mais comum e utilizada, seja no dia a dia de empresas, seja em escolas. Esta tendência consiste na incorporação de elementos dos jogos no sistema organizacional de trabalho, consumo ou aprendizado. Isto pode ser visto, por exemplo, no acúmulo de “pontos” que podem ser trocados por produtos ou descontos, nos sistemas de bonificação de funcionários ou até mesmo na clássica pergunta dos professores “quem responder certo, ganha meio ponto”.
O intuito inicial desse texto era ajudar professores que quisessem aplicar a gamificação nas salas de aula, mas ao começar a escrever, me deparei com questões mais complexas sobre o assunto: O que é um jogo? O que torna do jogo tão envolvente e, muitas vezes, emocionante? Por que jogamos tanto? Quais são os elementos que podem ser extraídos e aplicados em outros contextos fora dos games?
Dado a extensão do assunto, decidi dividir esse texto em duas partes: na primeira, abordaremos as questões conceituais envolvendo os jogos, de modo a nos aprofundar e esclarecer para potenciais curiosos e interessados no tema que decidam se aventurar nessa palavra. Na segunda, focaremos na aplicação da gamificação na sala de aula, e para isso, pedi ajuda para o professor, doutor e especialista em games, Vince Vader, para que respondesse algumas perguntas sobre o assunto.
Sendo assim, vamos começar por uma pergunta fundamental: o que é um jogo?
Dentre as inúmeras definições de “jogo” que já surgiram ao longo da história, trabalharemos com a do historiador holandês Johan Huizinga, no seu livro Homo Ludens (1938):
“O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à ideia geral de jogo. Os animais brincam tal como humanos.”
Ao incluir o jogo como elemento anterior à própria cultura, como algo inerente, não apenas ao ser humano, mas a toda vida animal, Huizinga propõe que “as grandes atividades arquetípicas do ser humano são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo”. Para o autor, a capacidade humana de colocar-se em um ambiente “lúdico”, como ocorre na construção de metáforas ou no mito, dita todas as “grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência”.
Ao descrever as características fundamentais do jogo, a primeira colocada por Huizinga é de que o jogo é uma atividade voluntária, ou seja, ele começa a partir do momento em que o sujeito é livre para escolher ou não jogar o jogo. A segunda característica do jogo, para o autor, é que o jogo não é a vida “corrente” ou “real” – trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria. Nas suas palavras, “toda criança sabe quando está ‘só fazendo de conta’ ou quando está ‘só brincando’”.
Vale ressaltar que, em meio aos exemplos com brincadeiras entre crianças ou animais, a noção de que o jogo é oposto à seriedade pode surgir. Todavia, esse contraste não é decisivo nem imutável. “Considerando em si mesmo, o jogo não é cômico nem para os jogadores, nem para o público”, ou seja, o riso e a falta de seriedade são atribuições que existem a partir de determinadas situações, mas eles não definem o que é o jogo. Afinal, não precisamos ir longe para ver jogos sendo levados extremamente a sério, partidas que movimentam muito trabalho e dinheiro, e reações das mais variadas possíveis, como a tensão, a tristeza, o choro, a raiva, tal como a alegria, o riso, o deboche e a comicidade.
Ao continuar a definição de jogo, Huizinga lhe confere uma terceira e fundamental característica: a de que o jogo é limitado e isolado. Joga-se até um fim determinado, com limites de tempo, espaço e um caminho e sentido próprios. Da mesma forma, outra característica dos jogos é a forma como ele se fixa imediatamente como característica cultural, podendo ser repetido e, consequentemente, tornando-se uma tradição.
Ainda sobre a limitação dos jogos, o autor ressalta que “todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea (…) A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial.”
Isto nos leva a mais uma característica de extrema importância para que o jogo seja jogo: ele cria a ordem e é a ordem. Não existe jogo sem um conjunto de regras a serem seguidas, que, se forem quebradas, faz com que todo o processo de jogar perca automaticamente o sentido. Como supracitado, o jogo gera tensão e incerteza. Os jogadores pretendem ganhar às custas do seu próprio esforço, mas não possuem a certeza de que vão vencer. Há uma relação constante entre tensão e solução nos jogos, e quanto mais elementos competitivos há no círculo mágico, mais o jogo torna-se envolvente e emocionante.
Mesmo que tenha sido escrito na década de 1930, e muito da nossa percepção de jogo tenha se transformado ao longo do tempo, as definições criadas por Huizinga em Homo Ludens continuam pertinentes para entender essa atividade ainda tão presente em nossa cultura, não à toa seu livro continua como bibliografia obrigatória para os estudiosos sobre o assunto.
Dada a contextualização teórica do jogo, voltemos ao assunto da gamificação e sua aplicação na educação.
Para isso, fizemos algumas perguntas ao professor, doutor e game designer, Vicente Martin Mastrocola, também conhecido como Vince Vader, que nos ajudou a compreender como os games influenciam o aprendizado.
Vince é professor na ESPM e PUC de São Paulo; publicou os livros “Game Design: modelos de negócio e processos criativos” e “Game Cultura: comunicação, entretenimento e educação“, pela Cengage Learning; e é autor de jogos de tabuleiro, cartas, para a internet, PC e mobile. É autor da versão “Vikings” e da versão “Game of Thrones” do clássico game de tabuleiro War, publicados pela Grow Jogos, além de atuar como consultor de conteúdo para a Copag do Brasil.
A entrevista você confere a seguir:
Em uma entrevista de 2014, você já falava sobre gamificação e a presença dos jogos no cotidiano. Também foi mais ou menos nessa época que essa palavra ganhou popularidade. Hoje, em 2023, quase 10 anos depois, o que você sente que mudou de lá pra cá?
Hoje a gente fala em gamificação em treinamento empresarial, em educação, em programas de fidelidade… existem vários fins para pensarmos em gamificação. De 2014 para cá, a ideia de gamificação não mudou – a gente continua trabalhando com uma questão de recompensa, que é superimportante dentro desse contexto. É importante saber o que a gente dá de recompensa, material ou simbólica, para determinado público. Eu posso ir a uma loja, comprar algo, ganhar pontos, conferir num aplicativo, trocar esses pontos etc. Talvez isso me faça comprar mais nessa loja, talvez me engaje mais naquela experiência. Mas no fundo, o que mudou foi a tecnologia. Quando a gente fala de gamificação hoje, é indispensável que a gente fale também em tecnologia. Um exemplo podemos ver na Sioux, empresa que realiza a Pesquisa Game Brasil, e que criou uma plataforma chamada Ludos Pro, que possibilita os clientes fazerem seus próprios jogos, a partir de presets e canvas disponibilizados para construir uma plataforma gamificada. Há 10 anos, por exemplo, você teria que fazer tudo do zero. Hoje, você tem plataformas e aplicativos que ajudam. Se você pesquisa “gamificação” nas lojas de aplicativos (como App Store ou Google Play), você vai encontrar softwares de gamificação, uma série de aplicativos que ajudam a fazer ações gamificadas. Eu acredito que a ideia de gamificação, de trabalhar com recompensas, barras de progressão, com elementos e técnicas de game design em contextos fora dos games, mudou muito por conta da tecnologia. E eu acredito – não gosto de fazer previsão do futuro, mas é inevitável falar disso – mas que agora, com a inteligência artificial, teremos sistemas gamificados que vão conseguir aprender mais com os usuários para dar feedbacks cada vez mais customizados.
Levando essa discussão para um contexto de sala de aula, como você acredita que a gamificação pode ajudar a desenvolver um estudante?
Um exemplo bem legal é essa escola chamada Quest to Learn. É uma escola de Nova Iorque totalmente gamificada e baseada no que a gente chama de Game-Based Learning. A partir de exemplos como o Duolinguo (aplicativo de ensino de idiomas), ou essa escola (Quest to Learn), que tem a trilha normal de um estudante dos Estados Unidos, podemos observar que a gamificação hoje tem o desafio de capturar a atenção de um público jovem, cujo atenção está cada vez mais dispersa. Não é que o jovem não presta atenção, mas ninguém presta mais atenção em nada pois estamos sempre muito dispersos nas diversas coisas ao nosso redor. E isso, para audiências mais jovens, é muito mais complicado pois existe uma tendência natural de dispersarmos nossa atenção com aquilo que nos interessa. Isso é normal. Então, quando a gente pensa em educação, e isso está sendo muito discutido e estudado na área de gamificação, é entender quais mecanismos dos games a gente consegue levar para as escolas para tornar a aula mais engajadora e interessante. Toda escola é gamificada: você entra e tem níveis – primeiro, segundo e terceiro colegial, até chegar no vestibular, que é como se fosse um boss no caminho. Chegando na faculdade, você tem o TCC, que é outro boss. Você tem notas, barras de progressão… A questão é que a gamificação nas escolas não é bem-feita. Se a nota de aprovação de uma escola é 7, por exemplo, 7 é a média, mas do 7 pro 10 não se vê muita diferença. Estes sistemas não são muito bem-feitos. Agora, se você pega a escola Quest to Learn, ou o Duolinguo, eles trazem mecanismos de games como metáforas, que fazem o estudante pegar aquela experiência, guardar uma lembrança positiva e dizerem para si mesmos: “é legal estudar por aqui”. O Duolinguo é a maior plataforma de estudos de idioma do planeta hoje. Antes dele e até hoje, existem inúmeros aplicativos de ensino de idiomas, mas o Duolinguo acertou nessa questão da gamificação, de trazer o lúdico para que as pessoas engajem, interajam e continuem na plataforma. Hoje temos grandes oportunidades, pensando em tecnologia, gamificação e conteúdo. Também não é só sobre tecnologia, é como você trabalha texto, imagem, áudio, vídeo, para engajar aquela pessoa que quer estudar. O que falta hoje no mercado é gente que pense no conteúdo, nas pautas, temas relevantes e o que é interessante para que as pessoas vejam uma progressão. As desistências que vemos muito em escolas de idioma, música ou nas academias, por exemplo, é porque demora para se ver resultados. Uma coisa que essas plataformas fazem é mostrar a progressão, quantas palavras ela aprendeu, que subiu de nível, que virou um mestre etc. Isto é muito legal, o feedback que te dão para mostrar que você cresceu na plataforma. Nestes sistemas de gamificação, quando pensamos em estudantes, o foco deve ser o engajamento daquele estudante dentro da plataforma. Existem mecanismos, muitas vezes simples, mas que a gente consegue traduzir para os estudantes com entusiasmo, de forma interessante, para as pessoas participarem de uma experiência legal e gamificada.
Para finalizar: se eu fosse um professor, independente da matéria, e quisesse tornar minha aula mais interessante, levar elementos dos games, capturar a atenção dos alunos etc., qual é o próximo passo que eu deveria seguir?
Hoje, nós temos uma facilidade muito grande de consumir conteúdos, e temos muitos grupos, em fóruns como o Reddit, sobre jogos e educação em meio às pautas de cultura pop, também podemos encontrar isso lá. Quem quer tentar levar a gamificação para a sala de aula, a primeira coisa que essa pessoa deve fazer, é começar a jogar de tudo. Para implementar gamificação, você tem que jogar. Jogar tabuleiro, cartas, videogame, celular… jogo de aventura, de puzzle etc. E no meio disso, desse incremento de repertório relacionado aos games, é importante colocar e observar critérios relevantes. Como no Assassin’s Creed, que pode ensinar história, ou em jogos de tower defence que é preciso utilizar a matemática para avançar. Como você pode ensinar adição e subtração por meio de um jogo? As pessoas têm essas ideias enquanto elas jogam. Para levar o game para a sala de aula, passa muito pelo repertório que a pessoa está disposta a assimilar e a experimentar para extrair insights legais para criar uma disciplina e dinâmica interessantes. Eu não acho que você tem que ter uma escola que é jogo o tempo inteiro, se tudo é jogo, nada é jogo, e as pessoas também enjoam de tudo que é excessivo. Mas, entre uma aula teórica e outra, é possível fazer atividades mais envolventes. E você conhecendo os jogos, ele pode sempre ser um bom começo de conversa para pensarmos essas plataformas e como desenvolver o conhecimento e o aprendizado.
REFERÊNCIA
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o Jogo como Elemento na Cultura (1938). São Paulo: Perspectiva, 2008.