Visitar o novo Museu do Ipiranga da cidade de São Paulo: uma oportunidade de conhecer melhor os brasis, suas gentes, suas vidas cotidianas e seus conflitos.
Nas minhas memórias de menina o Museu do Ipiranga era um lugar de passeio em um grande jardim, de brincar e andar de bicicleta. O palácio, como me parecia ser a grande construção no alto do jardim, deveria ter sido moradia de príncipes e princesas. Jovem, já estudando História na USP, tornou-se lugar de admiração, pela guarda e custódia de acervos importantes, e por contar um pouco da história do Brasil, mesmo que apenas pelas lentes dos paulistas.



O Museu que conheci como estudante de História, também destacava a Independência do Brasil, principalmente pelas figuras de D. Pedro I e sua primeira esposa, a Imperatriz Leopoldina, além de apresentar carruagens e objetos de cultura material próprias do século XIX. Lembrava-me, ainda, da maquete da São Paulo em 1841, e da aventura de tentar reproduzi-la com “massinha” junto aos meus alunos da então quarta série, hoje quinto ano do Ensino Fundamental. Com essas imagens povoando minhas memórias, fui visitar o novo Museu do Ipiranga, após escutar detalhes sobre o projeto de colegas professores que acompanharam mais de perto as reformas e a inauguração.
Minha primeira alegria foi ver o Museu cheio e observar que não havia um público específico, mas pessoas de todas as idades que caminhavam pela escadaria central e pelas salas de exposição e, depois, desciam aos jardins, ou talvez ao contrário. No entorno do Museu, feiras e barracas diferentes, reforçando sua presença na vida das pessoas da cidade e seu papel como ordenador dos espaços no bairro do Ipiranga, lugar histórico da proclamação da Independência.
A entrada ao Museu havia mudado, antigamente entrávamos pelo térreo, e seguíamos o caminho indicado pela escadaria central, aquela que representa o rio Tietê, pelo menos é assim que minha memória selecionou as caminhadas que fiz pelo Museu antigo com alunos. Entrando pelo novo subsolo, encontramos uma sala de boas-vindas, com projeções que nos apresentam o Museu e suas salas de exposições. Subimos ao térreo por escadas rolantes que nos permitem observar as paredes em suas construções originais.
Chegando ao térreo, curvando à esquerda antes de subir a escadaria central, a primeira surpresa: aprendi, finalmente, e com muito e vergonhoso atraso, que ninguém nunca havia morado por ali. Como afirma o poeta Waly Salomão, a memória é mesmo uma ilha de edição. Esta informação deveria estar em algum lugar do Museu antigo, eu apenas não registrei, e, por isso, talvez, tenha sempre oferecido respostas evasivas à pergunta sobre quem teria morado ali, aquelas perguntas que a família faz ao historiador disponível no Natal. A edificação havia sido projetada para ser um Monumento à Independência do Brasil.

Planejado desde 1855, suas primeiras coleções demonstravam alguma vocação para ser um Museu de História Natural, mas também se dedicou, ao longo de sua história, à arqueologia, à etnologia e à zoologia. Foi apenas em 1917, que se decidiu que o Museu seria um Museu Histórico. Para cumprir esta decisão, e em acordo com as comemorações do centenário da Independência que se aproximava, o historiador Afonso de Taunay foi nomeado diretor do Museu, tendo permanecido no cargo até 1945. Muitas das obras expostas no Museu foram encomendadas por esse diretor e, nas palavras do historiador Paulo César Garcez Marins, consagram uma dimensão da formação do Brasil marcada pela paz, imagem que vinha sendo construída desde o período imperial.
Recentemente, uma colega me contou a reação de seu filho quando foram ao Museu depois de reformado. O menino, com uns dez anos, disse algo como: “Gostei não, tudo mentira nesses quadros, os indígenas foram mortos.” O incômodo do menino se explica pelos novos rumos do ensino de História nos últimos anos: é preciso contar a história dos povos submetidos, dos escravizados, daqueles que diuturnamente vivem e constroem os brasis, não apenas mostrar os grandes feitos de grandes heróis.
Mesmo que os feitos sejam mesmo importantes, como a Independência do Brasil, o acontecimento não pode ser resumido às ações de D. Pedro I e de sua esposa Leopoldina. Mas além de destacar as histórias de povos ausentes da história tradicional, é preciso conversar com os alunos sobre as dimensões que uma obra-de-arte guarda: sua autoria e seu contexto de produção. E neste aspecto, o novo Museu do Ipiranga é primoroso: ao mesmo tempo em que suas paredes e escadas expõem as obras que contam a história que as elites do estado de São Paulo queriam narrar sobre seu papel na História do Brasil, suas salas destacam os conflitos e os “apagamentos” resultantes dessas escolhas. Os estudos sobre as monções e os bandeirantes apresentados pelo novo Museu tipificam as novas escolhas.

A tela de Oscar Pereira da Silva, 9º Encontro de Monções do Sertão, encomendada por Taunay, representa, de modo pacífico e quase idílico, a rotina de comércio das monções que cortavam os sertões dos brasis entre os séculos XVIII e XIX. Expedições fluviais que ligavam São Paulo aos antigos espaços de Mato Grosso a partir de caminhos abertos pelos bandeirantes, as monções enfrentavam regularmente povos indígenas em defesa de seus territórios. Além disso, elas se ancoravam no trabalho escravo de indígenas e africanos. Esses conflitos são apresentados aos visitantes do novo Museu nas histórias das disputas pelo território, que incluem franceses, holandeses e espanhóis, que destacam a resistência dos povos indígenas e dos africanos escravizados.
O enaltecimento da figura do bandeirante também é discutido no novo Museu, não apenas por sobrelevar as ações violentas contra povos indígenas, mas pela contestação da imponência representada em telas como esta, de Henrique Bernardelli:

Segundo o Museu nos informa, essa imagem, muitas vezes reconhecida como “verdade” sobre o lugar dos bandeirantes em nossa história e enraizada em livros didáticos ao menos até os anos de 1980, pode ser uma construção a partir da imagem de monarcas absolutistas franceses dos séculos XVII e XVIII. E, de fato, chapéus, armas e botas tão imponentes não poderiam sobreviver tão incólumes a uma travessia que envolvia conflitos constantes e dificuldades típicas de florestas, onde a farmacopeia, as armas e os modos de caçar, andar e navegar em rios indígenas eram bem mais importantes do que os saberes dos colonizadores e dos bandeirantes.
Assim, ao invés de apagar ou exaltar a memória da história que as elites paulistas quiseram construir da epopeia bandeirante a partir de São Paulo, o novo Museu discute essas imagens colocando-as em diálogo com outras dimensões das histórias dos brasis. Talvez seja essa discussão que precisasse ser apresentada ao menino que considerou que as telas e esculturas eram “mentiras”: elas contam uma história, a da imagem que as elites paulistas queriam perpetuar sobre o estado de São Paulo. Mas há outras histórias, por isso tal imagem deve ser colocada em diálogo com outras histórias e dimensões.
Além da alegria pela movimentação de cidadãos pelas ruas dos jardins, escadarias e salas, tive certeza de que precisaria voltar, nem deu tempo de ver com atenção as salas sobre as moedas, as louças e os brinquedos. Tão pouco pude subir no mirante, que parece permitir uma visão em 360º da cidade de São Paulo. O Museu fechava às 17 horas e eu tinha comprado entrada para o horário das 15. Vou voltar, e deixo ao leitor o convite para ir e levar seus alunos, amigos e famílias!
Ahhh, antes de me despedir sugiro que não deixe de visitar o site, leitor, contém linhas do tempo, vídeos explicativos e imagens que por si só constituem narrativas históricas sobre o Museu e sobre os brasis:
Para os meus primos, Viviane e Marcelo, que foram comigo!
As sugestões abaixo são livros relativos às exposições do novo Museu do Ipiranga:
CINTRA, Jorge P. (Coord.) Territórios em disputa. São Paulo: Edusp: Museu Paulista da USP, 2022.
MARINS, Paulo C. G. (Coord.) Uma história do Brasil. São Paulo: Edusp: Museu Paulista da USP, 2023.
MARINS, Paulo C. G. (Coord.) Passados imaginados. São Paulo: Edusp: Museu Paulista da USP, 2023.