Ainda o tráfico de escravizados no século XXI?
Em 1998, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o dia 23 de agosto como o Dia Internacional de Lembrança do Tráfico de Escravos e sua Abolição. A data escolhida remete a uma revolta de escravizados e negros libertos acontecida na madrugada de 22 para 23 de agosto de 1791, na Ilha de São Domingos (Haiti), localizada no mar do Caribe.
Tratou-se da primeira rebelião de escravizados que deu origem a uma República governada por pessoas negras, de origem africana ou afrodescendentes. A ONU espera que a data sirva para condenar as muitas escravizações modernas com as quais ainda convivemos. Segundo a ONU, o crime de tráfico de pessoas ainda atinge algo em torno de 2,5 milhões de pessoas em todo o mundo.
Os números do tráfico de pessoas e do uso dos traficados para trabalho escravo em diferentes lugares do mundo são alarmantes, envolvendo muitas vezes crianças.
Um relatório produzido pelo Ministério da Justiça e pela Segurança Pública do Brasil, com dados de 2021 a 2023, mostra que a maior parte das vítimas em solo brasileiro são homens entre 18 e 29 anos. Além disso, o relatório destaca que há não nacionais resgatados do trabalho escravo no Brasil, como paraguaios e bolivianos.
Trata-se, assim, e infelizmente, de uma prática que acompanha a história da humanidade e que ganha sempre novos contornos. Por isso, é bom relembrar suas origens, entre os séculos XVI e XVII, quando os colonizadores europeus necessitavam de mão de obra para produção em larga escala, e consideraram “boa” a ideia de escravizar e deslocar povos para os lugares das plantações, especialmente as Américas.
Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro, o Brasil importou 46% de todos os escravizados trazidos da África para as Américas. Foram cerca de 4,8 milhões de africanos trazidos à força para o Brasil. Muitas pessoas eram proprietárias de escravizados no Brasil, não eram apenas os fazendeiros.
A escravidão foi uma instituição forte e definidora da organização social do Brasil como nação. Ela definiu, também, hierarquias entre nações e povos que foram “normalizadas” na época contemporânea. Não por acaso, os povos africanos, que sofreram a diáspora e a exploração de suas riquezas, enfrentam hoje problemas econômicos e sociais que, na maioria das vezes, não afligem aos países de capitalismo avançado nas mesmas proporções. São sempre vistos como atrasados e afeitos à violência, como se os colonizadores e os escravizadores não fossem violentos.
À época de nossa independência de Portugal, chegou-se a debater a incorporação dos escravizados como cidadãos no novo Império que se formava. José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), por exemplo, propôs a abolição progressiva do tráfico e da escravidão, mas os interesses dos traficantes e dos proprietários de escravizados se impuseram. A Constituição de 1824, a primeira do Brasil independente, não apenas manteve a escravidão, os castigos e a tortura contra escravizados, como impediu que os africanos libertos tivessem acesso à cidadania.
O fim do tráfico em 1831 mostraria a força dessa instituição em terras brasileiras, assim como suas conexões com os lugares da África controlados por traficantes brasileiros. As redes semiclandestinas de tráfico de escravizados atuariam até 1850, quando efetivamente se acabou com o tráfico, mas não com a escravização em terras brasileiras.
Foi a luta dos escravizados e dos abolicionistas, articulando diversas formas de resistência, que acelerou o processo de abolição e impediu que proprietários de escravizados fossem indenizados após a libertação efetiva. Quando veio a abolição, em 1888, tínhamos já uma história de séculos de métodos de repressão e tortura que se foram reorganizando, seja por meio das polícias ou por meio de tratamentos autoritários e desrespeitosos oferecidos a empregados domésticos e trabalhadores pobres em geral.
Destacamos aqui, alguns acontecimentos da história do Brasil relativos ao tráfico de pessoas para escravização e os caminhos de sua abolição. Mas, considerando o lugar da diáspora africana na história da humanidade, seria possível indicar acontecimentos de muitos outros lugares que receberam escravizados, conforme o mapa acima mostra.
No mesmo sentido, o fim do tráfico e a abolição do trabalho escravizado, em terras brasileiras e em outros países, não traria vida mais fácil e nem acesso à cidadania para os libertos. Eles eram vistos como escravizados por boa parte da sociedade brasileira do século XIX. Tal fato está presente em muitos outros lugares, como nos Estados Unidos da América (EUA) e na África do Sul.
A foto abaixo bem ilustra o que significou ser livre do ponto de vista civil e carregar o peso de quatro séculos de histórias de escravização e resistência em uma sociedade hierarquizada e elitista, e que assim se manteria entrados os séculos XX e XXI. Nunca é demais lembrar que analfabetos só ganharam direito de voto no Brasil com a Constituição cidadã de 1988, e a maioria do ex-escravizados era analfabeta.
Creio ser possível afirmar que o tráfico de pessoas dos séculos XX e XXI não passa de ressignificação do tráfico acontecido entre os séculos XVI e XIX e que produziu a diáspora africana.
Trata-se de considerar que parte das pessoas do planeta não tem direito à cidadania e que os interesses econômicos justificam o tráfico de pessoas e a sua escravização.
Assim, os debates proporcionados pela lembrança do Tráfico permitem construir um lugar político para denúncias das muitas escravidões modernas.
Segundo dados do relatório Global Slavery Index, de 2018, 40,3 milhões de pessoas já foram submetidas a diversas formas de escravidão moderna, e entre esses, 369 mil são brasileiros.
Nunca é demais finalizar afirmando, como fizeram José Bonifácio (1763-1838), Luiz Gama (1830-1882), Joaquim Nabuco (1849-1910) e José do Patrocínio (1853-1905), entre muitos outros, que a escravização de pessoas no Brasil foi elemento de formação da nação, infelizmente. E isso explica muito as exclusões sociais com as quais convivemos ainda hoje, além, evidentemente, do racismo estrutural. O que também pode-se afirmar para outras nações de tradição escravocrata, como os EUA e a África do Sul.
Uma pequena bibliografia para os interessados:
- ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul. S. P.: Companhia das Letras, 2000.
- Brasil/MJSP. Relatório nacional sobre o tráfico de pessoas – Dados de 2021 a 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/trafico-de-pessoas/relatorio-nacional-trafico-de-pessoas-oficial.pdf Acesso em 14/8/2024.
- MAMIGONIAN, B. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
- SIQUEIRA, P. & QUINTEIRO, M. Tráfico de pessoas. S. P.: Editora Ideias & Letras, 2013.