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Histórias da Pequena África, no Rio de Janeiro, em fotografias. 

Por Ana Nemi

Estimativa de leitura: 6min 15seg

5 de fevereiro de 2024

A PEQUENA ÁFRICA, ou as Pequenas Áfricas, como muitos gostam de chamar para destacar a pluralidade de ancestralidades afrodescendentes que ali podemos encontrar, é um museu a céu aberto, e faz parte da história de todos os brasileiros. 

Dom Olu e Candida, Rei e Rainha da Pequena África, na novela Nos tempos do Imperador, representados pelos atores Rogério Brito e Dani Ornellas, além dos outros destaques da novela, Alan Rocha e Mary Sheila | Foto: TV Foco

Em uma novela recente, intitulada Nos Tempos do Imperador, o público pôde assistir a uma bela representação da Pequena África, termo pelo qual ficou conhecida uma pequena parte do Rio de Janeiro habitada por afrodescendentes livres durante o Segundo Reinado (1840-1889). Foi o sambista Heitor dos Prazeres (1898-1966) que nomeou o lugar, localizado na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, como Pequena África, e isso já no século XX. A novela destacou Dom Olu e Candida como Rei e Rainha da Pequena África, uma representação de príncipes africanos que viveram no Brasil.  

O mapa representa os lugares da Pequena África que formam um ótimo circuito de passeio cultural. | Fonte: Pretos Novos

O Instituto Moreira Salles (IMS), um museu especialmente dedicado à fotografia e à música com sede em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Poços de Caldas, abriu uma exposição que conta a história desse território negro de múltiplas lideranças e manifestações culturais. A exposição se chama Pequenas Áfricas – O Rio que o samba inventou, e se trata de um excelente passeio para as férias escolares. O museu organizou a história das Pequenas Áfricas da zona portuária do Rio de Janeiro a partir de fotografias, quadros, reproduções de canções, representação das tias que organizaram as primeiras rodas de samba e de histórias dos primeiros cordões carnavalescos que desfilaram pelos lugares da Pequena África.  

A fotografia é uma invenção do século XIX e trouxe uma série de desafios aos historiadores. Seria ela um registro da realidade? Ou um recorte da realidade escolhido pelo fotógrafo que registra suas impressões sobre uma pessoa, sobre grupos sociais, lugares e/ou acontecimentos? A fotografia abaixo, do francês Theophile Auguste Stahl, de 1865, tipifica as dúvidas que desafiam os historiadores: 

Largo do Catumbi e cemitério de São Francisco de Paula à direita, em 1865. | Foto: Augusto Stahl

Stahl tinha um estúdio de fotografia na cidade do Rio de Janeiro nos anos de 1860, na mesma época em que os afrodescendentes das Pequenas Áfricas desenhavam suas resistências na forma de lutas e de canções. Essa foto é desta época. Observe bem leitor, é a esquina da rua da Floresta, no Rio de Janeiro. Você diria que ele registrou um instante na vida de negros livres e escravizados? Talvez, mas Stahl parece brincar com o registro que a fotografia pode fazer, pois os personagens foram distribuídos na rua e no pequeno comércio representado pelo fotógrafo, ele montou a cena!

Mas o casario, o arruamento, a natureza retratada, e mesmo os personagens, não existem de fato? Sim, e então esse não seria um registro efetivo da realidade de moradores que se movimentavam pela rua da Floresta? Nós, historiadores, fazemos essas perguntas quando utilizamos fotografias como documentos para compor as nossas narrativas históricas, já que elas nos indicam rastros, vestígios, a partir dos quais buscamos recompor o passado. 

“Não somos nada sem um passado. Precisamos dele para nos sentir parte de algo maior e mais antigo que chamamos de ancestralidade. (…) Mantemos uma luta constante contra o esquecimento, que tenta apagar o passado. Mas nossa memória é limitada e traiçoeira, por isso a engenhosidade humana inventou formas de registrar um instante no tempo. Criamos o desenho e a escrita… E também a fotografia, capaz de congelar um lampejo de existência. (…) O mágico efeito de evocar instantes perdidos.” 
Paco ROCA. Regresso do Éden. São Paulo: Devir, 2022, pp. 12, 13, 14, 15, 18. (Grifo meu) 

A exposição do IMS/SP concentra a história que narra entre os anos de 1910 e 1940, recompondo os primeiros passos do samba nas Pequenas Áfricas e destacando as sociabilidades dos descendentes dos africanos escravizados. Para usar os termos de quadrinista Paco Roca, a exposição nos ajuda a lutar contra o esquecimento de momentos importantes da história da música e do samba no Brasil. Trata-se, sem dúvida, de reconhecer ancestralidades e conversar com elas em relação ao nosso tempo vivido. 

Além de homenagear personagens importantes que inscreveram essa história nas histórias de todos os brasis, a exposição identifica lugares por onde eles andaram e que fazem parte dos espaços da Pequena África, como o Cais do Valongo e a Praça Onze

O Cais do Valongo, redescoberto em 2011 e hoje um sítio arqueológico reconhecido como patrimônio mundial pela UNESCO, era o principal lugar de desembarque e comércio de africanos escravizados do Brasil. Ele é apresentado aos visitantes com fotografias de Walter Firmo, como essa: 

O Cais do Valongo com casario ao fundo, 2023. | Fonte: A autora, Ana Nemi, fotografou a foto de Walter Firmo quando visitou o IMS/SP  

A Praça Onze de Junho, destruída sob protestos dos moradores e sambistas da região nos anos de 1940, é apresentada como a capital da Pequena África. Por ela passaram os primeiros cordões carnavalescos do Rio de Janeiro e a primeira escola de samba, a Deixa Falar, fundada em 1928, e era nela que se reuniam os transeuntes do território, em torno dos seus quiosques.  

Um quiosque da Praça Onze. O nome da Praça homenageia a vitória brasileira na Batalha do Riachuelo, em 1865, na Guerra do Paraguai (1874-1870). | Fonte: IMS

No território da Pequena África, desde os anos de 1870, estabeleceram-se negros vindos da Bahia, trazendo manifestações culturais afro-brasileiras que ali ganharam novos contornos. Nos quintais das casas das tias que acolhiam músicos, como Pixinguinha (1898-1973), Donga (1871-1974), Ismael Silva (1905-1978) e João da Bahiana (1887-1974), essas manifestações se expressavam em sons que ficaram conhecidos como partido alto, maxixe e samba, e, também, em religiosidades herdeiras das tradições africanas. 

Visitando a exposição, eu conheci um jornalista negro chamado Francisco Guimarães (1875-1946), o Vagalume, que escrevia crônicas sobre as Pequenas Áfricas e dizia que foi na casa de uma das tias, talvez a mais famosa, a Tia Ciata que os sambas se popularizaram. 

No fundo do espaço dedicado à exposição, na parede, há uma enorme Linha do Tempo do samba brasileiro, desde as primeiras tias e Donga até sambistas recentes, como Paulinho da Viola e João Nogueira, demonstrando a ancestralidade dos negros como continuidade. 

Tive a sorte de ir à exposição no IMS/SP em época de aulas do calendário escolar. Havia uma escola visitando o IMS/SP, a monitora contava histórias de negros, de resistências e de sambas. Eu pude ouvir as crianças acompanhando a canção Carinhoso, de Pixinguinha, e aplaudindo, foi muito bonito! Aproveite suas férias leitor! 

Para minhas alunas Tairini e Maria Alice, que foram comigo visitar a exposição!  

Licenciada em História pela USP, foi professora na educação básica e hoje é professora de História e do Programa de Mestrado e Doutorado Profissional em Ensino de História da Unifesp. E também é autora de livros didáticos.
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