Conheci certa vez dois irmãos de seis e quatro anos, crianças adoráveis que passavam as tardes descobrindo os livros da biblioteca da minha casa e brincando com os meus gatos. Enquanto o mais velho fazia as primeiras incursões no universo das letras e do tão esperado processo de alfabetização, para a surpresa dos familiares, o mais novo dominava a leitura no melhor exemplo de imitação e autodidatismo.
Ao ver o mais velho se dedicar a compreender as mágicas conexões entre as letras do alfabeto, cujas combinações criavam palavras antes reconhecidas apenas em sua versão sonora, o menino de quatro anos se antecipou aos manuais pedagógicos ao decifrar os encaixes perfeitos das letras, sílabas, palavras e frases.
Era uma graça ver o menino tirar os livros da estante e ler, um atrás do outro, as frases dos livros infantis. Enquanto o mais velho, parecia se contentar ao apreciar apenas um livro, com calma, do começo ao fim, acompanhando com o dedinho as letras que surgiam nas páginas das obras literárias.
Resolvemos, então, ler um livro juntos e foi nítida a diferença de postura entre os irmãos. O mais novo conseguia ler o texto em voz alta e o mais velho acompanhava dando sequência à leitura. Ao final da história, pedi para que eles me contassem a narrativa de novo, dessa vez, sem ter acesso ao texto.
E qual não foi a surpresa ao ver que o irmão mais velho conseguia repetir a história de maneira fiel, às vezes até usando as mesmas palavras do texto escrito e garantindo a entonação adequada para os momentos de tensão, surpresa e resolução da história. E foi aí que eu percebi que o irmão mais novo sabia ler todas as palavras e frases, mas não compreendia o que estava lendo.
Essa pequena anedota doméstica ilustra bem a diferença entre uma leitura instrumental e uma leitura literária.
O leitor “instrumentalizado” é capaz de reconhecer as regras do sistema linguístico, bem como a transposição dos signos em seus significados, mas não está apto ao outro pilar que sustenta a leitura literária: a capacidade de compreensão da estratégia linguística que transforma um texto em uma história que está além das palavras.
Para além do mérito de um menino de quatro anos que aprendeu a ler praticamente sozinho (e que certamente alcançará o status de leitor literário em um virar de página), nossa tarefa e missão como educadores e amantes do livro é garantir que o exercício da leitura vá além da aquisição da prática leitora.
Que a literatura se desloque, cada vez mais, da função utilitária de aprender o bêabá para ser uma aliada na formação de cidadãos sensíveis, empáticos, críticos, divertidos, solidários e conscientes de seu papel na sociedade – para citar alguns dos inúmeros benefícios transformadores que o contato com a boa literatura é capaz de proporcionar.
Isabel Lopes Coelho publisher de Literatura na FTD Educação. É também autora da obra A representação da criança na literatura infantojuvenil (Ed. Perspectiva, 2020), fruto da sua tese de doutoramento em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP). Em 2012, recebeu o prêmio BOP – Best Children’s Publisher of the Year, concedido na Feira do Livro Infantil de Bolonha.
Ela participa de eventos internacionais como convidada e palestrante, como o Salon du Livre et de la Presse Jeunesse (Montreuil, Fança, 2006 e 2012), o Minimondi (Parma, Itália, 2007), o I Encuentro Latinoamericano de Editores de Libros para Niños e Jóvenes (Bogotá, Colômbia, 2009), o FIL Rights Exchange Programm (Guadalajara, México, 2017), o Rendez-vous de Québec Éditions (Montréal, Canadá, 2018) e Sharjah Book Conference (Sharja, Emirados Árabes, 2019). Participou do Programme Courants du Monde (Paris, França, 2012) e foi bolsista no Fellowship da Internationale Jugendbibliothek (Munique,Alemanha,2015).
A publisher também ministra cursos e palestras sobre literatura infantil e sobre o livro ilustrado