“Por que muitos estudantes não gostam da Matemática?”
Imagine um bibliotecário que, em uma época que não havia sequer calculadora eletrônica, determinou com impressionante precisão o comprimento da circunferência da Terra usando ideias que envolveram proporcionalidade. Ou então, pense em um filósofo que, entre uma e outra reflexão existencial, foi um dos fundadores de um dos campos mais importantes da Matemática. Essas personagens não só existiram, como são apenas dois dentre muitos exemplos de profissionais de outras áreas do conhecimento que tiveram papel importante na História da Matemática.
O primeiro, Erastóstenes, nasceu na costa da África (onde hoje é a Líbia) por volta de 276 a.C. e trabalhou na biblioteca de Alexandria, no Egito, uma das mais famosas da Antiguidade. O segundo, o francês René Descartes (1596-1650), publicou em um dos apêndices de sua principal obra, o Discurso do Método, ideias que serviram de base para a fundação do que hoje denominamos geometria analítica. Esses dois exemplos contrapõem a noção de que a Matemática é uma ciência isolada das demais.
Muitas vezes, sem que percebamos, aplicamos conhecimento matemático em nossas tarefas cotidianas. Ao preparar um bolo, as quantidades dos ingredientes costumam ser indicadas com unidades padronizadas de medidas de diferentes grandezas, como grama para a massa e litro para capacidade. Para tomar a decisão sobre a forma de pagamento ao comprar um produto, à vista ou a prazo, é importante fazer a análise com base em conceitos da Educação Financeira. Quando observamos um gráfico em uma informação veiculada em uma rede social, podemos inferir se tais informações são verdadeiras ou fake news por meio de conhecimentos estatísticos.
Em relação ao mundo das profissões, não é diferente: para medir distâncias entre corpos celestes, o astrônomo usa Matemática; para determinar a idade do fóssil de um dinossauro, o paleontólogo usa Matemática; para calcular a dosagem de um remédio, o médico ou o enfermeiro também usa Matemática.
Menino fazendo cálculos em uma lousa. Reprodução: Shutterstock
Uma pergunta que escuto com frequência é: “Por que muitos estudantes não gostam da Matemática?”. Não existe uma resposta simples para essa complexa questão, uma vez que são diversos os fatores que podem ocasionar essa aversão. No entanto, muitos estudantes não percebem que a Matemática está por toda parte, no dia a dia deles e em qualquer que seja o ofício que desejam seguir na vida adulta, mesmo que em menor ou maior grau de aplicabilidade.
Uma estratégia para revelar aos estudantes essa característica da Matemática, como uma ciência integradora, é abordar conceitos matemáticos com um viés interdisciplinar. Nesse sentido, cabe ao professor propor atividades que integrem a Matemática e outros componentes curriculares, avaliando uma determinada situação por meio de diferentes olhares.
Na escola, a sala dos professores é um ambiente propício para trocas entre os docentes das diferentes áreas. Seja em sua hora-atividade ou entre um café e outro, o professor de Matemática pode discutir com o professor de Ciências como relacionar o estudo de potências e o crescimento de populações de bactérias. Já os professores de Matemática, Arte e História podem elaborar um trabalho conjunto relacionando geometria e pintura corporal típica de alguns povos indígenas brasileiros.
Outro exercício interessante para um professor, é consultar materiais educacionais de um componente curricular que não seja o da especialidade dele. Ao folhear um livro de Geografia, por exemplo, um professor de Matemática pode identificar inúmeras interseções entre esses componentes curriculares, como proporcionalidade e escala de mapas, estatística e dados populacionais, coordenadas cartesianas e coordenadas geográficas, dentre outras integrações. No entanto, cabe destacar a importância de se ter cuidado ao tratar de conceitos de outras áreas do conhecimento quando fazemos abordagens interdisciplinares. Sobre isso, tenho uma história interessante:
Certa vez, apresentei a um amigo, que é autor de livros educacionais de História, uma atividade que eu havia rascunhado para um livro e que relacionava capoeira e Matemática. Nela, eram explorados os ângulos formados nas partes do corpo do capoeirista em seus movimentos. Minha intenção com essa consulta era validar informações históricas contidas na atividade que estava em produção, como a origem da capoeira e sua relação com os povos africanos. Após a avaliação da atividade e elogios sobre a criatividade nessa integração entre Matemática e História, meu amigo pontuou um erro conceitual relevante no enunciado da atividade. No trecho criticado, eu dizia que a capoeira foi desenvolvida por africanos escravizados que “vieram” ao Brasil. O apontamento realizado por ele foi de que esses africanos não vieram, mas “foram trazidos”. A troca desses termos, que pode aparentar em um primeiro momento ser de pouca relevância, se revelou essencial, uma vez que o termo “vieram” tem uma conotação de voluntariedade ou espontaneidade, enquanto que “foram trazidos” aponta que esses africanos foram compelidos à viagem transatlântica, que é a verdadeira natureza dessa migração.
Propor abordagens interdisciplinares, integrando diferentes componentes curriculares, promove uma formação plena dos estudantes. Em especial, perceber os conteúdos matemáticos em situações tratadas em outras áreas, possibilita a promoção de um ensino mais significativo e menos fragmentado. Descobrir e explorar essas integrações proporciona a todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, estudantes e professores, ampliarem suas visões de mundo.