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SUS: Conquista da democracia brasileira e da Constituição cidadã 

Por Ana Nemi

Estimativa de leitura: 10min 32seg

27 de setembro de 2024

“E só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.” Ulysses Guimarães, em 5 de outubro de 1988. 

Em 1988, depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985), e após poucos três anos de recomeços do regime democrático no Brasil, foi promulgada uma nova Constituição, conhecida como Constituição cidadã. O então presidente do Congresso Nacional, Ulysses Guimarães (1916-1992), discursou no momento da sua promulgação afirmando (grifos meus): 

“Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. (…) A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. (…) Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (…) O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria. (…) Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”. (…) A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. (…) A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. (…) A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. (…)”

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Festa no Congresso Nacional com a promulgação da Constituição cidadã de 1988. Fonte: Wikipedia.

O discurso de Ulysses Guimarães resumiu os anseios da população que participou fortemente dos debates que antecederam à promulgação. Essa é a única Constituição do Brasil que, de fato, contou com a participação popular na sua escrita. Isso aconteceu porque, no que diz respeito à saúde, no final dos anos de 1970, ainda sob a ditadura, e ao longo dos anos de 1980, formaram-se movimentos sociais em defesa de um sistema público de saúde. 

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A passeata por uma nova constituição federal no início dos anos de 1980 trazia a reivindicação por melhores condições de saúde. Fonte: Fiocruz.

A luta foi longa e difícil. Em Campinas, por exemplo, opositores da ditadura, ligados às universidades locais e articulados com políticos vinculados ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao qual estava filiado Ulysses Guimarães, aliaram-se aos movimentos sociais das áreas periféricas e pobres. A aliança permitiu organizar serviços em postos de saúde novos que foram criados em diálogo com as populações locais, a partir das vitórias do MDB nas eleições para a prefeitura. Esses postos formaram a base sobre a qual o SUS seria construído a partir de 1988. 

A foto mostra a população da periferia de Campinas se reunindo para discussão sobre os problemas sanitários dos bairros e as necessidades em saúde. Muitas das reuniões eram feitas nas Igrejas, onde atuavam padres ligados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Fonte: Arquivo NEPP/Unicamp

Os movimentos sociais que cresceram nos anos de 1970 e 1980, lutando pela redemocratização do Brasil, contra a fome e a carestia e em defesa dos direitos humanos, tiveram grande importância nos debates que deram origem à Constituição cidadã. Ainda em 1986, esses movimentos se uniram aos sanitaristas defensores de um novo sistema público de saúde para o Brasil e participaram ativamente da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS). Na abertura da VIII CNS, o sanitarista Sérgio Arouca (1941-2003), então presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e que também presidiu a VIII, afirmou: 

“Saúde não é simplesmente ausência de doenças, é muito mais que isso. É bem-estar mental, social, político. As sociedades criam ciclos que, ou são ciclos de miséria, ou são ciclos de desenvolvimento (…) Saúde é o resultado do desenvolvimento econômico-social justo.”

Sus
Abertura da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. O presidente da República está no centro da mesa e à sua direita, na foto, está Sérgio Arouca. Fonte: Fiocruz.

Ulysses Guimarães e Sérgio Arouca, em seus discursos, enfatizaram o lugar da saúde na formação do cidadão, na construção de uma sociedade justa e no desenvolvimento social e econômico dessa sociedade. Sociedade com miseráveis não forma cidadãos. Cuidar da saúde, assim, não é apenas evitar a doença, mas garantir justiça social considerando educação, lazer, moradia com boas condições sanitárias, liberdade  e saúde. 

O projeto de um sistema nacional de saúde, único e público, foi uma das propostas saídas da VIII CNS. Encaminhada ao governo federal, essa proposta informou os debates que vinham sendo feitos no âmbito do Congresso Nacional. O resultado pode ser lido nos artigos da Constituição cidadã dedicados ao tema da saúde (grifos meus): 

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. 

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: 

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; 

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; 

III – participação da comunidade. 

§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (…)  

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. 

§ 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.” 

O SUS, de acordo com o que foi definido na Constituição cidadã, é uma rede de serviços, ações e cuidados regionalizada e hierarquizada. A rede deve assegurar a promoção da saúde, que são cuidados para melhorar a qualidade de vida da população, considerando os determinantes sociais em saúde dos diferentes lugares dos brasis; a proteção à saúde, garantindo acesso universal e igualitário a todos os cidadãos aos serviços de saúde; e, por fim, a recuperação dos cidadãos, com equipamentos, medicamentos e ações de reabilitação. 

Além disso, a rede de serviços e ações que compõe o SUS deve obedecer às diretrizes de descentralização, integralidade e participação da comunidade. A descentralização é importante porque permite que os governos estaduais e municipais atuem de acordo com as necessidades das populações locais.

E por isso, a participação da comunidade é fundamental: os Conselhos de Saúde, eleitos pela comunidade, existem nos níveis municipal e estadual para ajudar essas duas esferas de governo a atuarem em acordo com as reivindicações locais, além de observarem a execução correta dos recursos. A integralidade é um princípio fundamental, pois indica que o SUS deveria oferecer todas as etapas dos cuidados em saúde: a promoção, a proteção e a recuperação.

Desta forma, os envolvidos na criação do SUS esperavam disponibilizar para a população atendimento integral, desde cuidados primários, como crises de asma, até cuidados mais complexos, como cirurgias e tratamentos de doenças como câncer.

Por isso, existem equipamentos de saúde que são chamados de primários, ou seja, funcionam como uma “porta de entrada” no sistema, a partir da qual o cidadão recebe cuidados primários (como vacinas, consultas simples, inalação etc.) e, se necessário, é encaminhado para equipamentos que oferecem serviços mais complexos, como serviços ambulatoriais, laboratoriais e hospitalares. 

O gráfico abaixo permite observar a importância da hierarquização dos serviços, já que a maior parte dos problemas de saúde se localiza no nível chamado de primário, onde se encontram as Unidades Básicas de Saúde (UBSs). 

Seja bem-vindo :D – A porta de entrada do SUS e o tratamento continuo! |  Rede Humaniza SUS - O SUS QUE DÁ CERTO

Hoje em dia, temos ainda as AMAs (Atendimento Médico Ambulatorial), que também oferecem serviços de baixa complexidade, e as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), que cuidam de casos mais graves encaminhados por uma UBS ou por uma AMA.  

Jairnilson Silva Paim, professor da UFBA e um dos sanitaristas que esteve nos debates que deram origem ao SUS, costuma afirmar que, infelizmente, os baixos níveis de recursos aportados para o SUS desde o seu nascimento impediram seu crescimento, e permitiram que os planos privados de saúde ocupassem espaços de atuação que deveriam ser do SUS. Isso aconteceu especialmente na edificação de equipamentos de maior complexidade, como os hospitais e laboratórios para exames mais custosos. Não se trata de uma ação ilegal, já que a Constituição cidadã autoriza que a iniciativa privada atue no fornecimento de serviços de saúde no Brasil. Mas se o SUS tivesse recebido os aportes necessários, seguramente não teríamos essa distribuição de leitos de UTI no Brasil (dados da Fiocruz para 2020): 

  • 75% dos brasileiros é usuário do SUS 
  • 25% dos brasileiros possuem seguro privado de saúde 

Mas: 

  • Setor público: 13,6 leitos de UTI para cada 100 mil habitantes, para atender 162 milhões de brasileiros 
  • Setor privado: 62,6 leitos de UTI para cada 100 mil habitantes, para atender 47 milhões de brasileiros 
  • PERFORMANDO 14 leitos públicos de UTI para cada 49 privados 

Não é preciso lembrar que essa distribuição desigual incidiu negativamente sobre o acolhimento da população pobre na época da pandemia de COVID-19. Mesmo assim, o SUS ofereceu à população brasileira um serviço de alta qualidade, e foi elogiado pelos organismos internacionais, como a ONU e a OMS, pela sua capacidade de ação e sua interiorização no Brasil. 

Assim, se há problemas como o do financiamento, que parece ser o problema fundante dos outros, e como as filas para consultas nas UBSs e para realização de exames nas unidades laboratoriais, é também forçoso afirmar a resiliência e a relevância do SUS para a construção da cidadania no Brasil. Por isso, em ano eleitoral, é bom lembrar disso na hora de escolher candidatos. E lembrar que novas epidemias poderão vir, assunto que tratarei no próximo artigo! Até lá! 

O discurso integral de Ulysses Guimarães pode ser escutado aqui: 

O discurso de Sérgio Arouca pode ser escutado aqui: 

Para os meus alunos, do Grupo de Estudos em História e historiografia da Saúde Pública (GESP) 

Pequena bibliografia para os interessados: 

  • ALMEIDA, Filho, N. O que é o SUS?. R, J,: Editora Fiocruz, 2011. 
  • PAIM, J. SUS – Sistema Único de Saúde. Tudo que você precisa saber. S.P., R. J.: Atheneu, 2019. 

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Licenciada em História pela USP, foi professora na educação básica e hoje é professora de História e do Programa de Mestrado e Doutorado Profissional em Ensino de História da Unifesp. E também é autora de livros didáticos.
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