“E só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.” Ulysses Guimarães, em 5 de outubro de 1988.
Em 1988, depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985), e após poucos três anos de recomeços do regime democrático no Brasil, foi promulgada uma nova Constituição, conhecida como Constituição cidadã. O então presidente do Congresso Nacional, Ulysses Guimarães (1916-1992), discursou no momento da sua promulgação afirmando (grifos meus):
“Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. (…) A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. (…) Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (…) O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria. (…) Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”. (…) A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. (…) A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. (…) A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. (…)”.

O discurso de Ulysses Guimarães resumiu os anseios da população que participou fortemente dos debates que antecederam à promulgação. Essa é a única Constituição do Brasil que, de fato, contou com a participação popular na sua escrita. Isso aconteceu porque, no que diz respeito à saúde, no final dos anos de 1970, ainda sob a ditadura, e ao longo dos anos de 1980, formaram-se movimentos sociais em defesa de um sistema público de saúde.

A luta foi longa e difícil. Em Campinas, por exemplo, opositores da ditadura, ligados às universidades locais e articulados com políticos vinculados ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao qual estava filiado Ulysses Guimarães, aliaram-se aos movimentos sociais das áreas periféricas e pobres. A aliança permitiu organizar serviços em postos de saúde novos que foram criados em diálogo com as populações locais, a partir das vitórias do MDB nas eleições para a prefeitura. Esses postos formaram a base sobre a qual o SUS seria construído a partir de 1988.

Os movimentos sociais que cresceram nos anos de 1970 e 1980, lutando pela redemocratização do Brasil, contra a fome e a carestia e em defesa dos direitos humanos, tiveram grande importância nos debates que deram origem à Constituição cidadã. Ainda em 1986, esses movimentos se uniram aos sanitaristas defensores de um novo sistema público de saúde para o Brasil e participaram ativamente da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS). Na abertura da VIII CNS, o sanitarista Sérgio Arouca (1941-2003), então presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e que também presidiu a VIII, afirmou:
“Saúde não é simplesmente ausência de doenças, é muito mais que isso. É bem-estar mental, social, político. As sociedades criam ciclos que, ou são ciclos de miséria, ou são ciclos de desenvolvimento (…) Saúde é o resultado do desenvolvimento econômico-social justo.”

Ulysses Guimarães e Sérgio Arouca, em seus discursos, enfatizaram o lugar da saúde na formação do cidadão, na construção de uma sociedade justa e no desenvolvimento social e econômico dessa sociedade. Sociedade com miseráveis não forma cidadãos. Cuidar da saúde, assim, não é apenas evitar a doença, mas garantir justiça social considerando educação, lazer, moradia com boas condições sanitárias, liberdade e saúde.
O projeto de um sistema nacional de saúde, único e público, foi uma das propostas saídas da VIII CNS. Encaminhada ao governo federal, essa proposta informou os debates que vinham sendo feitos no âmbito do Congresso Nacional. O resultado pode ser lido nos artigos da Constituição cidadã dedicados ao tema da saúde (grifos meus):
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (…)
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”
O SUS, de acordo com o que foi definido na Constituição cidadã, é uma rede de serviços, ações e cuidados regionalizada e hierarquizada. A rede deve assegurar a promoção da saúde, que são cuidados para melhorar a qualidade de vida da população, considerando os determinantes sociais em saúde dos diferentes lugares dos brasis; a proteção à saúde, garantindo acesso universal e igualitário a todos os cidadãos aos serviços de saúde; e, por fim, a recuperação dos cidadãos, com equipamentos, medicamentos e ações de reabilitação.
Além disso, a rede de serviços e ações que compõe o SUS deve obedecer às diretrizes de descentralização, integralidade e participação da comunidade. A descentralização é importante porque permite que os governos estaduais e municipais atuem de acordo com as necessidades das populações locais.
E por isso, a participação da comunidade é fundamental: os Conselhos de Saúde, eleitos pela comunidade, existem nos níveis municipal e estadual para ajudar essas duas esferas de governo a atuarem em acordo com as reivindicações locais, além de observarem a execução correta dos recursos. A integralidade é um princípio fundamental, pois indica que o SUS deveria oferecer todas as etapas dos cuidados em saúde: a promoção, a proteção e a recuperação.
Desta forma, os envolvidos na criação do SUS esperavam disponibilizar para a população atendimento integral, desde cuidados primários, como crises de asma, até cuidados mais complexos, como cirurgias e tratamentos de doenças como câncer.
Por isso, existem equipamentos de saúde que são chamados de primários, ou seja, funcionam como uma “porta de entrada” no sistema, a partir da qual o cidadão recebe cuidados primários (como vacinas, consultas simples, inalação etc.) e, se necessário, é encaminhado para equipamentos que oferecem serviços mais complexos, como serviços ambulatoriais, laboratoriais e hospitalares.
O gráfico abaixo permite observar a importância da hierarquização dos serviços, já que a maior parte dos problemas de saúde se localiza no nível chamado de primário, onde se encontram as Unidades Básicas de Saúde (UBSs).
Hoje em dia, temos ainda as AMAs (Atendimento Médico Ambulatorial), que também oferecem serviços de baixa complexidade, e as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), que cuidam de casos mais graves encaminhados por uma UBS ou por uma AMA.
Jairnilson Silva Paim, professor da UFBA e um dos sanitaristas que esteve nos debates que deram origem ao SUS, costuma afirmar que, infelizmente, os baixos níveis de recursos aportados para o SUS desde o seu nascimento impediram seu crescimento, e permitiram que os planos privados de saúde ocupassem espaços de atuação que deveriam ser do SUS. Isso aconteceu especialmente na edificação de equipamentos de maior complexidade, como os hospitais e laboratórios para exames mais custosos. Não se trata de uma ação ilegal, já que a Constituição cidadã autoriza que a iniciativa privada atue no fornecimento de serviços de saúde no Brasil. Mas se o SUS tivesse recebido os aportes necessários, seguramente não teríamos essa distribuição de leitos de UTI no Brasil (dados da Fiocruz para 2020):
- 75% dos brasileiros é usuário do SUS
- 25% dos brasileiros possuem seguro privado de saúde
Mas:
- Setor público: 13,6 leitos de UTI para cada 100 mil habitantes, para atender 162 milhões de brasileiros
- Setor privado: 62,6 leitos de UTI para cada 100 mil habitantes, para atender 47 milhões de brasileiros
- PERFORMANDO 14 leitos públicos de UTI para cada 49 privados
Não é preciso lembrar que essa distribuição desigual incidiu negativamente sobre o acolhimento da população pobre na época da pandemia de COVID-19. Mesmo assim, o SUS ofereceu à população brasileira um serviço de alta qualidade, e foi elogiado pelos organismos internacionais, como a ONU e a OMS, pela sua capacidade de ação e sua interiorização no Brasil.
Assim, se há problemas como o do financiamento, que parece ser o problema fundante dos outros, e como as filas para consultas nas UBSs e para realização de exames nas unidades laboratoriais, é também forçoso afirmar a resiliência e a relevância do SUS para a construção da cidadania no Brasil. Por isso, em ano eleitoral, é bom lembrar disso na hora de escolher candidatos. E lembrar que novas epidemias poderão vir, assunto que tratarei no próximo artigo! Até lá!
O discurso integral de Ulysses Guimarães pode ser escutado aqui:
O discurso de Sérgio Arouca pode ser escutado aqui:
Para os meus alunos, do Grupo de Estudos em História e historiografia da Saúde Pública (GESP)
Pequena bibliografia para os interessados:
- ALMEIDA, Filho, N. O que é o SUS?. R, J,: Editora Fiocruz, 2011.
- PAIM, J. SUS – Sistema Único de Saúde. Tudo que você precisa saber. S.P., R. J.: Atheneu, 2019.