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Sobre eleições, eleitores, representação e cidadania: o modelo inglês 

Por Ana Nemi

Estimativa de leitura: 6min 26seg

19 de março de 2024

Os ingleses são muito ciosos de suas tradições políticas e de suas leis, mas será que elas são mesmo tão democráticas? 

Imponente, à beira do rio Tâmisa, no coração da capital do Reino Unido, encontra-se o Palácio de Westminster, ou a Casa do Parlamento inglês, onde se reúnem membros eleitos para representar os cidadãos. 

Em seu Guia oficial, um livro de capa verde, bastante ilustrado e disponível na loja do Palácio, os autores nos informam que o edifício que reúne os membros do Parlamento existe desde o século XI, abrigou monarcas e o primeiro Parlamento da Inglaterra no século XIII, além de ter sofrido um incêndio em 1834 que obrigou a reformas e reconstrução.  

Na História narrada por este Guia oficial, a partir da afirmação de que o Palácio se constitui em um símbolo da nação, destacam-se os seguintes acontecimentos históricos:  

O Palácio de Westminster, em Londres, Reino Unido. 

1. A imposição de limites ao poder do Monarca pela Magna Carta de 1215 a partir de ações da nobreza que exigia a formação de um Parlamento com poderes de aconselhar o governo;  

2. A existência da Casa dos Lordes e da Casa dos Comuns com lugares separados no Palácio;  

3. As mudanças decorrentes das guerras civis do século XVII, quando o Parlamento passou a se reunir regular e efetivamente estabeleceu sua supremacia sobre a Monarquia;  

4. As lutas sociais pela universalização do voto no Reino Unido, com especial destaque para o voto feminino e a atuação das sufragistas;  

5. As reformas sociais do século XX votadas no Parlamento, com especial destaque para a universalização do voto e as modificações na composição da Casa dos Lordes.  

À esquerda, cartaz convocando para manifestação das sufragistas. À direita, uma sufragista portando cartaz convocando para manifestação em favor do voto para mulheres. | Fonte: Material trazido pela autora do Imperial War Musem, de Londres. 

Mas, estranhamente, o Guia oficial do Palácio não explica exatamente como se formaram as duas Casas citadas. Uma delas, a Casa dos Lordes, composta historicamente por herdeiros da antiga nobreza e que não se forma a partir de eleições gerais, e outra, a Casa dos Comuns, constituída por membros escolhidos pelos cidadãos em eleições gerais. A primeira, até 1911, podia vetar decisões da Casa dos Comuns. Destacam-se modificações na Casa dos Lordes, como a possibilidade de uma maior diversidade a partir da diminuição do número de membros de origem nobre e hereditária. No entanto, mesmo tendo sofrido modificações em sua formação, parte de seus membros tem lugar vitalício em função de sua origem nobre. Desta forma, se há um avanço da Casa dos Comuns, efetivamente representantes dos cidadãos do Reino Unido, nas decisões do governo, é de se observar a continuidade de privilégios de setores da nobreza no que diz respeito à participação nas decisões governamentais.  

O voto universal foi conquistado no Reino Unido em 1928, quando todos os adultos puderam exercer esse direito, mas apenas para compor a Casa dos Comuns. Para isso, as mulheres que defendiam o voto feminino, chamadas de sufragistas, desenharam uma longa trajetória de lutas representadas nas imagens abaixo e destacadas no Guia oficial do Palácio. 

À esquerda, cartaz convocando mulheres para se reunirem em frente ao Palácio de Buckingham, para entregar suas reivindicações ao Rei. À direita, imagem representando a tortura que era feita com sufragistas presas, pois elas se recusavam a comer e eram forçadas. | Fonte: Material trazido pela autora do Imperial War Musem, de Londres. 

Mulheres, em Londres, convocando para manifestação em favor do voto feminino, final do século XIX. | Fonte: Material trazido pela autora do Imperial War Musem, de Londres. 

No filme As sufragistas, de 2015, a diretora britânica Sarah Gavron escolheu enfatizar o momento em que a luta das mulheres inglesas definitivamente passou das manifestações pacíficas para a insubordinação, muitas vezes violenta, no início do século XX. A personagem central pertence às classes pobres trabalhadoras, mas a luta das sufragistas foi, no mais das vezes, conduzida por mulheres estudadas e de camadas mais privilegiadas da sociedade. Tal fato não diminui sua importância, por óbvio, mas sugere indagar sobre outros movimentos sociais que lutaram por participação política e que não aparecem na história oficial contada pelo Guia oficial do Palácio de Westminster.  

Por exemplo, o movimento conhecido como cartismo, no qual trabalhadores, ao longo do século XIX, dirigiam-se por meio de cartas ao Parlamento e colocavam suas reivindicações trabalhistas e políticas, como o voto universal masculino e secreto e o fim do trabalho infantil. Muitas de suas propostas foram incorporadas e significaram avanços na legislação trabalhista do Reino Unido, mas não aparecem no Guia… 

Cabe, ainda, afirmar a ausência do debate sobre direitos políticos e civis de imigrantes na legislação britânica. Na cidade de Londres, atualmente, metade da população é composta por imigrantes, segundo dados oficiais, e todos os cidadãos do Reino Unido sofrem as consequências da saída da União Europeia em 2020, fato que provocou aumento dos preços e do custo de vida. A saída da União Europeia, aliás, foi fortemente marcada pelo incômodo de parte da população com a presença de imigrantes, esperava-se diminuir a entrada deles fechando as fronteiras em relação à Europa continental.

Representação de um motim de cartistas em Londres. | Fonte: Wikipedia

Mesmo assim, até junho de 2023, haviam chegado ao Reino Unido 672 mil imigrantes com intenção de permanecer no país (dados de imigração legal), a maioria de países de fora da União Europeia, como a Índia, a Nigéria, a China e o Paquistão. Por isso, a partir deste ano de 2024, as regras para a imigração legal estarão endurecidas no Reino Unido, conforme prometeram membros do Partido Conservador que se encontra no governo.

Assim, no país em que o Palácio de Westminster, com toda sua tradição histórica de luta pelos direitos de voto e representação popular, reina soberano às margens do rio Tâmisa, boa parte da população ainda acredita que, impedindo a entrada de imigrantes, os problemas econômicos serão resolvidos. Segundo os críticos desse endurecimento, a diminuição do fluxo de trabalhadores imigrantes impactará negativamente sobre o Sistema Nacional de Saúde, conhecido como NHS (National Health System), já que há escassez de trabalhadores neste setor e os imigrantes costumam preencher essas vagas.  

Quanto à pergunta que abriu esse pequeno texto, sem dúvida existem fortes elementos democráticos na organização dos processos eleitorais e de participação política no Reino Unido, mas também existem elementos que podem e devem ser criticados, pois se constituem em impedimentos para uma efetiva inclusão social, além de manter as desigualdades sociais. 

E nós brasileiros? Como elegemos representantes e lidamos com eles em nossa história? No próximo texto conversaremos sobre isso! 


Uma pequena bibliografia aos interessados

BURKE, P. & PALLARES-BURKE, M. L. G. Os ingleses. S. P.: Contexto, 2016. 

U.K. PARLIAMENT. The Palace of Westminster – Offical Guide. Londres: UK Parliament, 2023. 

Sobre o filme As sufragistas


Para minha filha Mariana, que conheceu o Parlamento inglês comigo. 

Ana Nemi
Licenciada em História pela USP, foi professora na educação básica e hoje é professora de História e do Programa de Mestrado e Doutorado Profissional em Ensino de História da Unifesp. E também é autora de livros didáticos.
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