O novo filme estrelado por Fernanda Torres entrelaça passado e presente, mergulhando na memória e história nacionais, em uma narrativa intensa sobre resistência e resiliência na luta por justiça no Brasil.
Há duas Fernandas em “Ainda Estou Aqui”: Fernanda Torres, a protagonista do filme e Fernanda Montenegro, sua mãe, que a interpreta mais velha e é uma icônica e eterna referência no cinema e teatro brasileiros. Ambas, cada uma a seu modo, representam o peso da arte na preservação de nossa história e na luta contra o esquecimento.
Neste filme, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, Torres revive uma história que carrega as marcas da repressão militar brasileira. Ao incorporar a mãe do autor, Eunice Paiva, uma mulher que enfrentou a perda e a ausência do marido Rubens Paiva – desaparecido pela violência do regime militar em 1971 –, Fernanda Torres apresenta ao público um relato profundo e impactante sobre o trauma histórico que moldou e ainda marca o Brasil.
A escolha da atriz para o papel de Eunice traz uma força simbólica poderosa. Sua mãe, Fernanda Montenegro, tem uma trajetória que se confunde com a própria história do cinema nacional. Ela é reconhecida por ter dado voz e corpo a personagens complexas, muitas vezes vulneráveis, que refletem as batalhas sociais e emocionais da mulher brasileira.
Em “Ainda Estou Aqui”, a presença das duas Fernandas remonta a esse legado familiar e artístico que vai além da atuação: encarna a continuidade e a resistência, honrando o espaço de mãe e filha e ressignificando suas trajetórias.
Fernanda Torres, com sua capacidade de transmitir ao público as nuances de uma dor que ultrapassa o tempo, revive a mãe de Marcelo em uma narrativa dolorosa e necessária, que coloca a memória no centro da luta por justiça. Este filme não apenas resgata a figura de Rubens Paiva, mas também a história de muitas outras famílias brasileiras que, como a de Marcelo, enfrentaram o luto forçado, a dúvida e o medo. “Ainda Estou Aqui” é, nesse sentido, uma leitura cinematográfica sensível do Brasil e de sua história recente.
O cinema nos dá a chance de reviver o que o autoritarismo tentou esconder.
No filme, Fernanda Torres não apenas representa a figura de uma esposa e mãe em luto; ela resgata as vozes de uma geração calada pela opressão. O desaparecimento de Rubens Paiva, ex-deputado federal e ativista político, é uma das marcas do período sombrio da ditadura militar.
Sua ausência forçada, que deixaria Eunice com filhos para criar e um luto constante para suportar, representa uma realidade que atingiu milhares de famílias. Fernanda Torres, em sua interpretação sensível e densa, reflete o sofrimento e a luta de Eunice para criar os filhos em meio ao medo, à incerteza e à dor de uma perda sem respostas.
Lançado num momento em que a jovem e ainda frágil democracia brasileira vivencia ataques constantes, o filme traz à tona o papel do cinema como memória coletiva, sendo uma ferramenta fundamental para quem deseja compreender e refletir sobre o impacto duradouro do autoritarismo. Assim, a película não se limita a contar a história de um desaparecimento. Ela revela uma narrativa que une a perda pessoal à resiliência e à coragem de seguir em frente. A atuação de Fernanda Torres transcende o individual e torna-se coletiva, dando voz a gerações que não puderam se expressar e convidando a sociedade a olhar para o passado sem desviar o olhar.
Marcelo Rubens Paiva, autor do livro homônimo que inspirou o filme, transforma a perda do pai em literatura e agora em cinema, contribuindo para que novas gerações possam refletir sobre o impacto do autoritarismo na formação de nossa identidade. Por meio de “Ainda Estou Aqui”, o cinema brasileiro mais uma vez cumpre seu papel de não só entreter, mas de provocar, conscientizar e, principalmente, manter viva a memória daqueles que foram silenciados.
“Ainda Estou Aqui” cumpre o papel social do cinema: é uma obra de arte que desperta, que questiona e que denuncia. A atuação de Fernanda Torres carrega não apenas o peso do papel, mas o compromisso de uma atriz que, tal como a mãe, vê o palco e a tela como um espaço de resistência. Ela nos lembra que a memória é essencial para a compreensão do presente e que somente através do enfrentamento das feridas históricas podemos construir um futuro mais justo e consciente. Como duas Fernandas, Montenegro e Torres são faces de uma mesma moeda: uma moeda que sustenta a memória, o protesto e a dignidade no cinema brasileiro.
Em “Ainda Estou Aqui”, o espectador é convidado a olhar para o passado e entender as marcas que ele deixou em nossa sociedade. A partir da história da família Paiva, o filme nos mostra que, mesmo quando tentam apagar a memória, ela persiste, seja nas páginas de um livro ou nas telas de cinema. Como espectadores, somos desafiados a encarar essas verdades e a reconhecer no cinema uma ferramenta de reflexão e resistência, capaz de projetar luz sobre o que muitos tentaram manter nas sombras.