Nós vamos certamente enfrentar questões profundas relacionadas à inteligência artificial e ao imaginário cultural nos próximos anos. Muitas dessas questões derivam de uma antiga angústia: “A inteligência artificial pode ter consciência?”. No fundo, essa pergunta revela muito mais sobre nosso desconforto em entender a própria consciência humana do que sobre as máquinas em si.
A questão de onde vem a consciência ou o que ela é de fato, ainda escapa à compreensão humana. Se aceitarmos que uma máquina pode desenvolver consciência, o conceito de consciência, que sempre foi um privilégio humano, será profundamente alterado.
Esta preocupação reflete uma angústia interna, já que mesmo no século XXI, o conceito de consciência ainda é mal compreendido. Quando investigado, muitas vezes é tratado de forma metafísica — como uma “iluminação divina” — ou através de teorias fisicalistas e materialistas, que sugerem que a consciência seja apenas o produto da atividade cerebral.
Porém, dentro da semiótica e das filosofias da cultura, a questão de uma IA ter consciência não é relevante. Não importa. Nunca importou. Na verdade, a humanidade sempre interagiu com “seres” in absentia — entidades com as quais nos relacionamos, mesmo sem saber se são reais ou não. O impacto cultural dessas interações sempre foi profundo, independentemente da realidade por trás delas.
Hoje, a IA não passa de uma simulação sofisticada de comunicação. E para o ser humano, isso já é suficiente para criar laços emocionais e relacionamentos profundos. As IAs atuais já escrevem textos, criam roteiros, vídeos e músicas com qualidade quase indiscernível de criações humanas.
No futuro próximo, plataformas de streaming poderão, com base em nossos gostos pessoais, criar filmes ou séries sob demanda, completamente personalizados. Isso não só aumentará o fenômeno das bolhas de entretenimento — algo que já vemos nas redes sociais — mas também poderá isolar ainda mais as pessoas em universos de entretenimento gerados exclusivamente para elas.
E quais são os riscos desse futuro? A humanidade sempre construiu laços a partir de experiências compartilhadas. Quando conversamos sobre filmes como “De Volta para o Futuro”, criamos conexões com base em memórias coletivas. O crescente desejo de individualismo cultural, impulsionado pela tecnologia, parece ser uma ambição de alcançar uma individualidade absoluta.
No entanto, o individualismo cultural nunca existiu verdadeiramente. Nossas visões de mundo, gostos e saberes são produtos de interações coletivas. Mesmo que nossas preferências sejam individuais, elas sempre se formam no espaço intersubjetivo, nas relações com as subjetividades dos outros.
Com a inteligência artificial, esse cenário pode se transformar radicalmente, afetando, em poucas décadas, a própria base do nosso imaginário social.
Mercado de emoções

Arrisco dizer que essa criação customizada de entretenimento poderá ser chamada de peer entertainment. Vai soar sofisticado. Assim, adentramos o “mercado de emoções”.
Imagine um aplicativo que simule uma chamada de vídeo com uma personagem fictícia, criada artificialmente, mas que pareça totalmente real. Já temos tecnologia para isso. Agora, pense que você poderia customizar essa pessoa: cor de pele, altura, gênero, estilo. E então, poderia conversar com ela como se fosse uma pessoa real, sobre sua vida, problemas, alegrias.
Agora, imagine o impacto disso no mercado de emoções. No aplicativo, você poderia comprar uma “skin” — a personalização visual da pessoa — por cinco dólares. Você poderia alterar sua profissão, de modo que ela converse com você de uma maneira específica, com conhecimento em áreas que você deseja, por mais dez dólares. E poderia também mudar o cenário em que ela aparece: uma mansão, um parque, uma casa simples. Cada alteração no ambiente, mais dez dólares.
Ainda mais, no nível mais avançado de personalização, você poderia comprar uma “personalidade completa” para essa personagem. Ela pode ser amorosa, objetiva, professoral, ou até mesmo desempenhar o papel de um treinador, um coach, um amigo, ou até o amor da sua vida. Seriam relações completamente falsas, mas emocionalmente autênticas para o usuário. Estamos falando de algo que, embora fictício, parece estar a um passo de se tornar realidade.
De certa forma, já vemos algo parecido no mercado de jogos. As pessoas criam laços emocionais com personagens ou desafios, liberando dopamina ao superar obstáculos. Até que se deparam com uma barreira intransponível — e para seguir em frente, precisam comprar um item, como uma arma virtual. Muitos compram. Surge daí o fenômeno dos whales — grandes consumidores que gastam milhões em plataformas de jogos móveis.
O que isso revela? Que embora não seja uma tecnologia completamente nova, a diferença agora é o acesso exponencial a essa tecnologia.
A emergência de novos fenômenos
Este é um ponto central em teorias de sistemas e ciências sociais: quando um elemento novo surge em uma quantidade sem precedentes, algo inesperado emerge. Este é o princípio da teoria da emergência, que explica como novos fenômenos surgem apenas pela multiplicação de determinados fatores. Se algo já existe, pode não causar nada de novo. Mas se esse algo se multiplica de maneira exponencial, novos fenômenos podem surgir.
O fenômeno emergente aqui é a multiplicidade de inteligências artificiais generativas, criando realidades, pessoas e emoções falsas, mas com um impacto real nas relações humanas. Estamos à beira de um fenômeno ainda desconhecido, pois os humanos parecem ter uma tendência a mergulhar de cabeça em simuladores de relacionamentos.
Não importa se são verdadeiros ou falsos, desde que simulem suficientemente bem. Na nossa cultura, temos tratado os seres humanos como limitações temporárias até que as máquinas os superem. Veja no mercado, por exemplo. Recentemente, ao pagar as compras, notei que mesmo sem filas nos caixas tradicionais, as pessoas preferiam aguardar para usar o autoatendimento, realizando o pagamento sozinhas nas máquinas.
Isto nos faz refletir sobre como temos encarado as pessoas como meras soluções temporárias, até que sejam substituídas por tecnologia. Quando digo “pessoas”, estou falando delas como sinais de uma limitação técnica. Elas estão ali, mas só até serem substituídas por uma máquina. Este é o panorama que, provavelmente, teremos que enfrentar: um futuro em que algo completamente novo na tecnologia impacta profundamente a cultura e o imaginário humano. O problema é que ainda não sabemos exatamente o que será, nem quais serão as consequências.
O universo não tem a obrigação de fazer você feliz.
É interessante pensar que, possivelmente, a base de tudo isso é a própria aversão humana à realidade. No mundo lá fora, nós não encontramos uma natureza que reflita exatamente nossas expectativas. Sabemos que o universo não tem nenhuma obrigação de nos fazer felizes, e talvez por isso criamos sistemas simbólicos que favorecem nossas visões. O terraplanismo é um exemplo claro: é muito mais confortável reforçar vieses de confirmação do que encarar a dura realidade, inclusive sobre nós mesmos.
Por isso, sempre que a tecnologia avança, ela tende a maquiar a realidade ou, em muitos casos, alterá-la de fato. Estamos entrando no que chamo de hiperparticularização das semiosferas.
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