Como ajudar os jovens a encontrarem propósito e significado em um mundo em constante transformação? A disciplina de Projeto de Vida no Ensino Médio oferece um espaço privilegiado para explorar essa questão. Inspirado pelas reflexões de William Damon e bell hooks1, este texto convida professores e professoras a repensarem suas práticas pedagógicas e a transformarem a sala de aula em um ambiente de liberdade e conscientização crítica. Um chamado para educadores que desejam ir além da orientação acadêmica e apoiar os jovens na construção de trajetórias significativas e transformadoras.
“Uma pessoa sem propósito de vida é como um navio sem leme”, escreveu Thomas Carlyle no século XIX. A ideia de que a vida precisa de direção atravessa os tempos, sendo reinterpretada por pensadores de diferentes contextos. No campo educacional, William Damon e bell hooks, com abordagens distintas, oferecem perspectivas ricas para refletir sobre o Projeto de Vida como uma ferramenta poderosa de transformação pessoal e social. Esta reflexão é especialmente pertinente para profissionais da Educação Básica, que lecionam a disciplina Projeto de Vida no Ensino Médio, pois ajuda a reimaginar a prática pedagógica como um catalisador de liberdade e consciência crítica.
A perspectiva de William Damon: Propósito como base estrutural
Para William Damon (2009), o Projeto de Vida está intrinsecamente ligado ao conceito de propósito (purpose), definido como “a intenção de realizar algo significativo para si mesmo e para a sociedade”. O autor categoriza os jovens em diferentes grupos: desengajados, sonhadores, superficiais e aqueles com projetos vitais nobres ou antissociais. Essa classificação sugere que um Projeto de Vida não é apenas uma ferramenta de autodescoberta, mas também uma forma de orientação ética e social.
Damon enfatiza que o processo de construir um Projeto de Vida exige que os jovens articulem seus valores pessoais com metas que promovam o bem-estar coletivo. Para ele, essa combinação entre felicidade individual e contribuição social é fundamental para o desenvolvimento humano pleno. No entanto, essa abordagem pode ser vista como limitada, pois tende a enquadrar o jovem em uma estrutura normativa, pouco sensível à diversidade e às complexas interseccionalidades que atravessam suas experiências.
A contribuição de bell hooks: Liberdade e consciência crítica
Em contrapartida, bell hooks (2013) nos convida a enxergar o Projeto de Vida como uma prática de liberdade. Para ela, a Educação não deve se limitar à transmissão de conhecimento; deve ser um ato político e transformador, que capacita os jovens a questionarem normas sociais, criticar estruturas opressivas e construir caminhos emancipatórios.
Em Ensinando a Transgredir: Educação como Prática de Liberdade, hooks defende a Educação como um espaço onde os estudantes podem explorar suas identidades, valores e sonhos sem medo de represálias. Essa abordagem, centrada no diálogo e na participação ativa, contrasta com a visão estrutural de Damon, propondo uma pedagogia que coloca os estudantes como protagonistas de sua própria jornada de aprendizagem e transformação.
A autora também destaca a importância de reconhecer as interseccionalidades — gênero, raça, classe e outras dimensões sociais — no processo educacional. Para ela, o Projeto de Vida não é apenas sobre definir objetivos individuais, mas também sobre entender e desafiar as dinâmicas de poder que limitam as possibilidades de realização.
Aproximações e Distinções
Apesar das diferenças, tanto Damon quanto hooks compartilham a crença na Educação como um caminho para construir vidas significativas. Enquanto Damon oferece uma estrutura orientada pela integração de valores e metas, hooks amplia essa discussão ao sugerir que o Projeto de Vida deve incluir a subversão de estruturas opressivas.
Por exemplo, Damon considera essencial que os jovens alinhem suas metas pessoais às necessidades da sociedade, promovendo a cidadania ativa. No entanto, bell hooks, argumenta que a verdadeira cidadania só pode ser alcançada quando os estudantes têm liberdade para questionar e transformar as próprias estruturas que definem a sociedade. Em outras palavras, enquanto Damon visa a construção de propósitos nobres dentro de uma estrutura social preexistente, hooks propõe que essa estrutura seja desconstruída e reconstruída de maneira mais justa e inclusiva.
Projeto de Vida como “Prática de Liberdade” nas escolas brasileiras
Nas escolas brasileiras, a disciplina de Projeto de Vida oferece uma oportunidade única para integrar essas duas perspectivas. Ao mesmo tempo em que se busca ajudar os jovens a identificarem seus valores e propósitos, é fundamental incentivar uma consciência crítica que os capacite a desafiar as limitações impostas por desigualdades estruturais.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconhece a importância de fomentar reflexões sobre vida afetiva, relações familiares, trabalho, bem-estar e participação social. Entretanto, para que isso seja efetivo, é essencial que os professores e professoras adotem uma postura que vai além do conteúdo programático. Como hooks enfatiza, educar é um ato de amor, coragem e compromisso com a transformação social. Essa abordagem exige que os profissionais da Educação sejam facilitadores de diálogos que comecem pela escuta. É preciso que haja disposição para uma escuta ativa, efetiva e afetiva.
Convidar os jovens e mediar o trabalho de construção de projetos de vida é um ato de grande ousadia e responsabilidade, que demanda um olhar atento às singularidades e potências de cada pessoa, sua história, seu contexto social e seu território. Integrar as perspectivas de Damon e hooks pode enriquecer a prática pedagógica, oferecendo aos jovens não apenas uma bússola para seus sonhos, mas também as ferramentas para problematizar o mundo ao seu redor. Afinal, um Projeto de Vida não é apenas um plano; é uma prática de liberdade, um caminho para descobrir quem somos e o que queremos desconstruir, reconstruir e construir coletivamente.
- Bell hooks (1952–2021), nome adotado por Gloria Jean Watkins, optou por grafar seu nome em letras minúsculas como um gesto político e simbólico. A escolha refletia sua intenção de dar mais ênfase às suas ideias do que à sua identidade pessoal. O pseudônimo foi inspirado em sua bisavó, Bell Blair Hooks, mas a autora decidiu diferenciá-lo ao escrevê-lo sem maiúsculas, destacando a coletividade e a importância do pensamento crítico sobre raça, gênero e classe. Sua obra se tornou referência nos estudos feministas interseccionais e na crítica cultural, com impacto significativo na Educação e na militância antirracista.
Referências
DAMON, William. O que o jovem quer da vida? Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes. São Paulo: Summus Editorial, 2009.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: Educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação, 2018.
MACHADO, Nilson. Educação: Projeto de Vida. São Paulo: Editora Contexto, 2006.