Pensando sobre Direitos Humanos nas eleições municipais.
Hoje em dia, quando falamos em Direitos Humanos (DH), podemos nos referir a muitas ideias, como a exclusão social a que historicamente foram submetidos afrodescendentes, indígenas, homossexuais e mulheres; as lutas pela inclusão de pessoas autistas ou com modos de ver e compreender o mundo diferentes em escolas; o respeito aos mais velhos e, ainda, os temas mais tradicionais, como as liberdades civis, os direitos dos trabalhadores, o direito à saúde e à educação, entre muitas outras pautas.
Mas de onde saiu tudo isso? De onde vieram essas ideias de direitos das pessoas e como chegaram até essas primeiras décadas do século XXI? O que nos faz invocar rapidamente a noção de direitos humanos para defender meninas estupradas, defender a saúde pública ou criticar jornadas de trabalho de mais de oito horas diárias? Bem, isso tudo começou lá pelo século XVIII e vamos reconstruir um pouco dessa trajetória nesse artigo.
Foi na passagem do século XVIII para o XIX que se elaboraram as noções de direitos como conhecemos hoje. À época, para acabar com os privilégios da nobreza, que, por exemplo, não pagava impostos, a população excluída desenvolveu a ideia de que todos as pessoas nasciam iguais e livres em direitos.
O povo, representado na charge acima pelo camponês que carrega a nobreza e o Clero nas suas costas, era formado por comerciantes, professores, artesãos, camponeses, pequenos proprietários, entre outros.
Mas há quase duzentos e cinquenta anos, quando muitos processos revolucionários acabaram com os privilégios de alguns setores da sociedade na Europa, os direitos eram considerados direitos dos homens e dos cidadãos, e excluíam as mulheres, os escravizados e os indígenas que viviam nas áreas colonizadas pelos europeus. Essas áreas, aliás, continuaram submetidas até que se rebelaram ao longo do século XIX formando nações livres, como o Brasil e a Argentina.
Além disso, quando foram escritas Constituições com as novas leis para uma sociedade que se pretendia nova, foram definidos critérios que impediam as populações pobres das nações europeias e de suas áreas colonizadas de votarem, por exemplo, altos níveis de renda e a exigência de alfabetização.
Assim, um longo caminho teria que ser percorrido entre os séculos XIX e XX para que, de fato, as constituições incorporassem todos os cidadãos em suas prescrições. E, também, um longo caminho para que os povos submetidos da África, da América e da Ásia proclamassem suas independências e criassem nações livres. Em alguns casos, como os de Angola e Moçambique, colônias portuguesas da África, a independência só viria na segunda metade do século XX.
No caso do povo brasileiro, assim como dos EUA, durante o século XIX, havia ainda que lutar contra a escravização de populações africanas deslocadas à força para a América, e essa luta foi muito difícil. Isso porque o escravizado era considerado propriedade privada de seu senhor, e a propriedade privada era considerada um dos direitos “naturais” e “inalienáveis” dos cidadãos.
Vejamos o que afirmam duas cartas de direitos importantes do final do século XVIII, a Declaração de Independência dos EUA, de 1776, e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da França, de 1789:
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados (…). Declaração de Independência dos EUA, de 1776.
Os cidadãos homens e brancos das colônias inglesas da América declaravam que eram iguais entre si, consideravam sua liberdade inalienável, mas não escreveram uma palavra sobre os escravizados, que assim continuaram até 1863, e que, mesmo livres, conviveram com regras fortíssimas de segregação até os anos de 1960. Foram as ações políticas daqueles homens brancos, livres e iguais que edificaram o racismo estrutural entre os norte-americanos. As mulheres só puderam participar da vida política a partir de 1920.
(…) a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:
Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. […]. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da França, de 1789.
Entre os franceses, que pouco conheciam a escravização de africanos em seu território, mas a praticavam em suas colônias, muitas vezes na forma de servidão até a década de 1960, todos os homens seriam livres e iguais. Distinções se justificariam na utilidade comum, do que se apreende que seria útil a todos a existência de trabalhadores assalariados que, analfabetos e com poucos rendimentos, logo seriam considerados inaptos ao voto e à participação política.
E vejamos a primeira Constituição do Brasil, de 1824:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade (mantida a grafia original).
A Constituição garantia a propriedade como inviolável, mas não tinha uma linha sobre a escravização de africanos… e sendo o escravizado propriedade privada, o senhor tinha seu direito à propriedade como inviolável… Assim, ao passo que no final do século XIX trabalhadores livres reivindicavam direitos trabalhistas e sociais, como jornada de oito horas diárias de trabalho, proteção ao trabalho feminino e a proibição do trabalho infantil, os escravizados lutavam por sua libertação. E após 1888, juntaram-se aos trabalhadores livres em suas lutas.
Embora não seja necessário afirmar que para os ex-escravizados e seus filhos, a trajetória em busca de direitos viria acompanhada da luta contra o racismo estrutural construído pela experiência de quatro séculos de escravização.
A trajetória dos cidadãos para de fato conquistarem seus direitos pode ser sumariada assim: ao longo do século XIX foram conquistados direitos civis e políticos, e ao longo do século XX foram conquistados os direitos sociais, entre os quais os direitos trabalhistas.
Na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial, especialmente por causa da experiência do Holocausto contra os judeus, começou-se a falar em uma carta de direitos humanos para todos os povos, que seria assinada pelos países que formavam a Organização das Nações Unidas (ONU). Desta forma, a noção de DH guardaria em si todos os direitos pelos quais os cidadãos lutavam: os direitos políticos, civis e sociais.
Os direitos políticos dizem respeito à livre organização de eleições, partidos políticos e outras organizações políticas, aos direitos de voto e participação em processos eleitorais e de proclamação de leis. Os direitos civis são nossas liberdades individuais, de manifestação e escolha. Os direitos sociais são aqueles que nos garante uma vida saudável e justa, com proteção ao trabalho e à saúde, alimentação, segurança, moradia, educação e previdência social.
Vejamos alguns trechos do preâmbulo da Declaração Universal de Diretos Humanos da ONU, aprovada em 1948 por sua Assembleia Geral:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,
Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, (…).
Note-se que a inserção do termo “universal” no título da Declaração sugere que a ONU defenderá tais direitos para todos os povos, todos os países e todas as nações. Além disso, considerando a experiência da Segunda Guerra Mundial com seus 40 milhões de mortos, havia a intenção de organizar politicamente os países de modo a evitar conflitos e a permitir que o chamado “império da lei” impedisse novos conflitos entre nações e dentro das nações.
Em seus artigos, a Declaração destaca que ninguém poderá ser preso por suas ideias, que todo ser humano tem direito a trabalho e vida digna, o que indica que cabe à ONU e às nações que tomam acento em suas assembleias e órgãos, garantir que tais direitos sejam cumpridos.
Nas últimas décadas do século XX, começaram a despontar as chamadas pautas identitárias, que se organizam pelos direitos de grupos sociais que destacam suas identidades próprias, como a população negra, as mulheres, as pessoas que se identificam como LGBTQIA+, entre muitas outras. Os novos coletivos que foram surgindo e que representam esses grupos, cresceram e conquistaram importantes vitórias em muitos lugares, inclusive na ONU.
Claro está que a ONU tem se mostrado menos capaz de forçar o cumprimento dos princípios anunciados na Declaração do que seria aceitável, mas pense leitor/eleitor: não seria pior se não tivéssemos uma Carta como essa para evocar quando queremos denunciar o racismo estrutural, o genocídio dos palestinos, violências urbanas, pobreza estrutural ou ações terroristas? Em época de eleições, não é bom invocarmos a Carta da ONU para exigir dos candidatos que defendam a efetiva aplicação dos direitos nela anunciados?
Uma pequena bibliografia para os interessados:
- HUNT, Lyn. A invenção dos direitos humanos. S. P.: Cia das Letras, 2019.
- NEMI, Ana. Direitos Humanos: Trajetórias Contemporâneas. In: PLENS, C. (Org.). Direitos Humanos – Sob a perspectiva do direito à vida, da antropologia forense e da justiça no caso de violações. S. P.: Annablume, 2022, p. 27-44.
- SGORI, Fábio. Ser humano é… Declaração Universal dos Direitos Humanos para Crianças. S. P.: Editora do Brasil, 2018.