Família

A digitalização antes da alfabetização: os impactos na Educação Infantil 

Por Juliana Piccoli

Estimativa de leitura: 9min 22seg

30 de julho de 2024

Quais os impactos da digitalização antes da alfabetização na Educação Infantil? Leia e fique por dentro!  

Uma das minhas primeiras lembranças da época de escola, cursando os primeiros anos da Educação Infantil, é a de copiar letras ou passar com o lápis por cima delas, nas folhas mimeografadas, ou, nessas mesmas folhas, pintar desenhos dos mais variados tipos e tamanhos, com lápis de cor, giz de cera e canetinhas coloridas. 

Nos primeiros anos, usávamos apenas o lápis. A passagem para o uso da caneta esferográfica, na minha escola, era quase como uma formatura, era tipo um evento marcando nossa grande evolução: a partir da terceira série, já tínhamos maturidade para usar a caneta e a gente curtia muito esse momento!  

Eu estou contanto essa história porque atualmente, antes mesmo de adquirirem habilidades básicas de alfabetização, um dos primeiros objetos no qual a criança tem contato, é o celular. Esta prática, cada vez mais comum, levanta uma série de questões sobre os impactos positivos e negativos na formação educacional.  

Por um lado, há quem defenda que existem benefícios cognitivos e educacionais, como o desenvolvimento de habilidades motoras finas, familiaridade com interfaces digitais e até mesmo a aprendizagem de conceitos básicos de matemática e linguagem.

Por outro lado, pode haver riscos, como a potencial redução da leitura de livros físicos e a interação social. Além disso, o impacto na saúde física e mental das crianças tem sido discutido. 

Segundo a pesquisa Crianças e adolescentes com smartphones no Brasil, publicada pela Mobile Time em parceria com a Opinion Box e realizada em setembro de 2023, 7% das crianças entre 0 e 3 anos já tem seu próprio smartphone, e entre 4 e 6 anos, o número sobe para 26%. Quando perguntado aos pais por que essas crianças já tinham seus aparelhos, a maioria respondeu que o uso é para entretenimento.  

Impactos na alfabetização tradicional 

O uso excessivo de dispositivos digitais pode diminuir o tempo dedicado a atividades fundamentais para a alfabetização, como a leitura de livros e a prática da escrita manual. A alfabetização tradicional requer habilidades que são desenvolvidas por meio de atividades físicas e repetitivas. 

O que tem sido observado nas salas de aula é a dificuldade das crianças até mesmo em segurar um lápis corretamente, afinal, digitar é mais simples do que escrever e elas acabam se sentindo incomodadas quando precisam copiar lições.

criança estudando

A questão é que a escrita à mão é importante na aprendizagem de habilidades psicomotoras para o desenvolvimento saudável e completo da criança. Não basta somente aprender a escrever as palavras, pois, junto à escrita, a criança desenvolve a memorização, a compreensão e a psicomotricidade. 

Outra questão abordada sobre a alfabetização infantil na era digital é o desaparecimento da letra cursiva no país. Enquanto alguns falam sobre a importância dela no desenvolvimento motor da criança, outros alegam que esse método de escrita acaba sendo segregador, pois crianças com Síndrome de Down, problemas motores ou paralisia cerebral têm mais dificuldade em desenvolver esse estilo.

Algumas escolas já adotam o uso de lousas digitais, tablets e notebooks, praticamente abolindo o uso do lápis, papel e caneta, mas não podemos nos esquecer que o país ainda carece de tecnologia em muitos Estados, portanto, por mais que o desaparecimento da letra cursiva seja discutido, é algo que pode acontecer, porém a longo prazo. 

Interferências na interpretação de textos 

Crianças expostas precocemente à digitalização podem estar mais familiarizadas com formatos digitais de texto, como páginas da web, e-books, e textos em dispositivos eletrônicos. Isso pode influenciar sua percepção sobre como os textos são apresentados e consumidos. 

Na internet, vivemos o consumo rápido das informações, de forma fragmentada com distrações (como anúncios, links etc.), o que pode afetar a capacidade das crianças de manterem a atenção em um texto por períodos mais longos. 

É preciso tomar cuidado para que as crianças não se tornem adultos com dificuldades interpretativas, já que não acontece uma leitura mais profunda dos textos. Além disso, o uso excessivo de dispositivos digitais pode limitar oportunidades para práticas de leitura em voz alta, discussões de livros e outras atividades que promovem o desenvolvimento de vocabulário e habilidades de expressão verbal. 

É importante salientar que a leitura de livros físicos frequentemente estimula a imaginação das crianças, permitindo que elas visualizem cenários e personagens. 
 

criança lendo

Entrevista com especialista 

Já não há mais como retroceder. O fato é que cada vez mais, a maioria das crianças vai chegar às escolas já digitalizadas. Eu entrevistei a educadora, neuropedagoga e neuropsicopedagoga Julyana Vicente sobre a digitalização antes mesmo da alfabetização e seus impactos na aprendizagem.  

1. Qual é o impacto da exposição precoce à tecnologia na habilidade de alfabetização das crianças? 

Atualmente, as crianças têm muitos estímulos eletrônicos que disputam com outras atividades fundamentais para o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita, como o manuseio de livros.

Ao não dar importância para a leitura de um livro, a criança está perdendo apoios importantes para esse tipo de desenvolvimento. Sabemos que as novas tecnologias oferecem muitos benefícios na área da Educação, porém também oferecem impactos negativos na alfabetização.  

2. Como a digitalização antes da alfabetização afeta o desenvolvimento cognitivo e socioemocional, inclusive na fase adulta? 

Podemos citar diversos exemplos de situações na infância que vão progredir até a fase adulta devido ao uso excessivo das telas.

Ao interagir com jogos eletrônicos simples, que não precisam de pensamentos mais complexos, a criança deixa de lado o desenvolvimento de habilidades cognitivas, como o raciocínio abstrato e a memória de trabalho. Também podemos perceber a influência negativa na capacidade de manter o foco em tarefas que exigem atenção prolongada.

Se pensarmos em desenvolvimento socioemocional, poderemos ter adultos que não estão acostumados ao convívio social, falta de empatia, grande comunicação não verbal e dificuldades para resolver conflitos. Além de gerar ansiedade e problemas de autorregulação emocional. 

3. A exposição precoce a dispositivos digitais pode influenciar na interação familiar e no tempo de qualidade compartilhado? 

Sim. Por terem mais estímulos interativos e visuais, os tablets e os celulares conseguem chamar mais a atenção das crianças, fazendo com que elas prefiram passar seu tempo com esses dispositivos e não com os membros da família.

Esse uso excessivo acaba diminuindo as relações e as chances de comunicação. As famílias devem estabelecer limites para o uso das tecnologias e reservar horários para as interações familiares, ajudando a ter um ambiente familiar mais saudável. 

4. Quais são os potenciais benefícios e desafios da introdução de dispositivos digitais antes que as crianças aprendam a ler e escrever? 

Podemos dizer que os dispositivos digitais na área educacional proporcionam um número muito grande de conteúdos educativos que ajudam a desenvolver habilidades cognitivas, linguísticas e matemáticas. Estes jogos motivam as crianças, de uma forma mais divertida, a explorar esses conceitos educacionais.

Outros aplicativos ou jogos podem ser adaptados para atender necessidades de inclusão, facilitando práticas do dia a dia e oferecendo os desafios diários de acordo com cada desenvolvimento.

Em contrapartida, sabemos que o uso excessivo de telas pode interferir em algumas atividades essenciais do desenvolvimento infantil, como manter o foco de atenção, dificuldades de concentração, desenvolvimento da coordenação motora fina, percepção sensorial, entre outras. 

5. Quais estratégias os pais e os educadores podem adotar para equilibrar a introdução à tecnologia na fase de alfabetização, durante a primeira infância? 

Algumas estratégias podem ajudar no processo de alfabetização, potencializando os benefícios educacionais. Ter horário definido e específico para o uso das telas com dispositivos educacionais ou recreativos, limitando o uso em outros momentos.

Ter sempre os conteúdos educativos selecionados, escolhendo aplicativos ou jogos adequados para o desenvolvimento de acordo com a faixa etária. Aproveitar esses momentos para interagir com as crianças, participando dos jogos, interpretando as histórias, ajudando a fortalecer o vínculo entre pais e filhos, educadores e educandos. 

A questão não é usar, mas sim, equilibrar

Já que a tendência não é o retrocesso da digitalização infantil, algumas ideias e sugestões são bem-vindas, até para que no futuro não se criem adultos 100% dependentes tecnologicamente.  

Reforçando as estratégias já citadas por Julyana Vicente, é possível equilibrar os benefícios da tecnologia digital e proteger o desenvolvimento saudável e integral das crianças: 

  • Estabelecendo uma rotina diária: Incorporar horários específicos para atividades físicas, leitura de livros físicos, brincadeiras ao ar livre e interação social, equilibrando com o tempo destinado ao uso de dispositivos digitais. 
  • Supervisionando o conteúdo: Monitorar o uso de dispositivos digitais e selecionar aplicativos e conteúdos que sejam educativos e apropriados para a idade, garantindo uma experiência digital segura e enriquecedora. 
  • Promovendo atividades diversificadas: Incentivar uma variedade de atividades que não envolvem tecnologia para desenvolver habilidades físicas, sociais e cognitivas de maneira equilibrada. 

Os pais também podem dar o exemplo para os filhos, demonstrando hábitos saudáveis de uso de dispositivos digitais, como desligar os aparelhos durante as refeições e as conversas familiares; estabelecer zonas livres de tecnologia em casa, como quartos e áreas de convivência comuns; participar de atividades off-line com as crianças para mostrar a importância de equilibrar o uso da tecnologia com outras formas de interação e entretenimento. 

Equilibrar a digitalização antes da alfabetização exige uma abordagem cuidadosa e proativa por parte dos pais e dos educadores. Ao estabelecer limites claros, supervisionar o conteúdo, promover atividades alternativas, educar sobre o uso responsável e dar o exemplo, é possível maximizar os benefícios da tecnologia digital enquanto protege o desenvolvimento saudável e integral das crianças. 

A era digital não é a vilã da história. A chave é encontrar um equilíbrio saudável que maximize os benefícios da tecnologia, enriquecendo o aprendizado e estimulando a criatividade, promovendo uma sociedade mais informada, segura e preparada para os desafios do século XXI. Vamos juntos, tornar as crianças aprendizes mais completas e preparadas para esses desafios! 

Leia mais sobre alfabetização, tecnologia e era digital aqui no Portal Conteúdo Aberto. Cadastre-se e receba a Newsletter, com conteúdo sempre atualizado.   

Publicitária com 20 anos de experiência em Comunicação. Redatora por amor. Apaixonada por livros, cultura e muitas viagens por esse mundão à fora.
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