“Toda fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si um fragmento determinado da realidade registrado fotograficamente”. Boris Kossoy
Hoje em dia, em todos os lugares que vamos, sempre tem alguém fotografando, registrando momentos que, no mais das vezes, serão disponibilizados em redes sociais, uma febre de “mostrar tudo que vivo a cada instante”. Mas não foi sempre assim, quando a fotografia foi inventada, no século XIX, eram precisos ao menos 30 segundos para bater uma fotografia. E depois havia o tempo de revelação, que podia levar uma hora nos anos de 1850, e sempre em lugares escuros e especialmente preparados para isso.
O daguerreótipo foi a primeira máquina fotográfica que podia fazer várias fotografias. Na segunda metade do século XIX, elas já existiam no Brasil. Seu preparo, após a revelação, era bem cuidadoso: era preciso um cristal de vidro para proteger a fotografia, e ela vinha guardada dentro de um estojo.
No final do século XIX, a empresa KODAK inventou os primeiros rolos de filme, possibilitando fazer várias fotos em sequência que, depois, eram reveladas em estúdios contratados para isso. A primeira câmera portátil, que podia ser guardada no bolso das calças e paletós, foi inventada pela mesma empresa no início do século XX. Mas elas eram caras. Por isso, por muitas décadas, havia os fotógrafos “lambe-lambe”, aqueles que as pessoas procuravam para fazer belas fotos da família e dos filhos. Alguns deles, como Chichico Alkimin (1907-1955), tinham pequenos estúdios para isso.
No século XIX, e mesmo nos dias de hoje, muitos acreditaram que, com a fotografia, seria possível registrar a realidade exatamente como ela era, guardar todos os momentos importantes, seus personagens, até as intenções das pessoas e povos. Enfim, acreditava-se que seria possível registrar todos os acontecimentos e que a pintura não precisaria mais fazer isso.
O próprio nome, fotografia, que quer dizer “escrever com luz”, talvez indique essa ilusão de poder registrar todos os instantes de nossas vidas rapidamente, sem perder nada e com muita iluminação! É como se a memória pudesse estar guardada nessa “imagem ato”, como o francês Philippe Dubois define a fotografia. Uma “imagem ato”, na qual se articulam as intenções do fotógrafo com as imagens que ele registra e eterniza.
A fotojornalista norte-americana Frances Benjamin Johnston (1864-1952) utilizou a fotografia para denunciar a situação dos indígenas e afro-americanos nos Estados Unidos, além de discutir o papel das mulheres na sociedade. Naquela época, os afro-americanos não tinham direitos civis e as mulheres não podiam votar, vivendo em grande submissão doméstica.
Johnston costumava afirmar que a fotografia não era um ato apenas mecânico, pois havia intenções e expressão artística. A máquina fotográfica colocada entre o olhar dos seres humanos e o resultado de sua arte, a fotografia, não seria capaz de resumir esse olhar a um artefato técnico cujo trabalho seria mais relevante do que o olhar em si.
Concordando com Johnston, é possível afirmar que entre as fotografias que fazemos e as nossas memórias existe uma espécie de compromisso secreto, já que vamos construindo uma linha do tempo de nossas vidas: aquilo que queremos guardar e depois contar, aquilo que queremos relembrar de outras pessoas e/ou antepassados. Assim, vamos organizando uma narrativa histórica e fotográfica de nossas vidas.
Nas paredes da minha casa existem muitas fotografias. Meu sobrinho me diz que “é coisa de velho”, e deve ser mesmo, colocar fotos nas paredes da casa talvez seja coisa de velho. E coisa de jovem é querer registrar tudo em milhares de fotos que nem temos tempo de ver depois, mas esse hábito de jovem também é dos mais velhos hoje em dia. Antes, quando usávamos as fotografias analógicas, aquelas que exigem filmes para fazer as fotos e posterior revelação, demorávamos mais escolhendo lugares, fazendo poses etc. Mas a fotografia digital, aquela que podemos fazer com nossos celulares e tablets, conquistou a todos, é rápido e fácil, e nem precisa revelar, fica ali guardada no celular e nas imensas nuvens de dados que cada um de nós cultiva pelas redes da internet.
Esse compromisso secreto entre a construção de memórias e fazer fotografias também acontece com os fatos e personagens que os fotógrafos profissionais registram nas imagens que fazem. Fotógrafos nazistas celebraram a invasão de Paris com fotos monumentais, que destacavam a ordem e a força do exército alemão. Esse tipo de foto exige cuidado, escolha de ângulo, distância, quantidade de pessoas na imagem, lugares de fundo, quase uma montagem. O francês Robert Doisneau (1912-1994), por sua vez, registrou instintivamente, segundo suas afirmações, a resistência dos franceses que não apoiaram a invasão alemã da França. Fotos construídas com recortes e leituras diferentes, escolhas e olhares distintos sobre o mesmo acontecimento.
As fotos digitais também conquistaram fotógrafos profissionais. Eles podem mandar de um país para outro os resultados dos seus cliques e oferecerem notícias quase ao mesmo tempo do acontecimento em si. Eles podem deixar a máquina fotográfica parada, em um suporte, em um lugar específico, no meio de um conflito, no alto de um prédio, no chão de uma rua movimentada, e a máquina fotográfica vai fazendo cliques muito mais rapidamente do que as mãos e o olhar humanos poderiam! Dessa forma, eles esperam captar aquilo que os seres humanos não poderiam, pequenos instantes, tão fugazes que escapariam aos nossos sentidos, circunstâncias não vistas, como pequenos gestos, movimentos, olhares e objetos caídos ou recolhidos.
Para as aulas de História, as fotografias se tornaram interessantes documentos a partir dos quais os alunos estudam temporalidades afastadas. Nesse processo, é fundamental lembrar o compromisso secreto entre o registro fotográfico e a construção de memórias, já que a fotografia não é uma expressão da realidade, mas de uma dimensão dela destacada pelo fotógrafo que, assim, constrói uma memória.
Nesse sentido, linhas do tempo com fotografias de familiares, de lugares, como ruas e quarteirões próximos às escolas, e até da escola, são ótimas maneiras de contribuir para que os alunos da Educação Básica consigam organizar sequências temporais cronologicamente, e, ao mesmo tempo, perceber que as sequências não são as mesmas para todos. Isso porque eles podem comparar suas linhas do tempo e verificar histórias diferentes com acontecimentos específicos das vidas de um ou outro aluno, e que não se replicam nas linhas feitas pelos outros.
Imagine fazer isso em casa leitor: você, seus filhos, ou primos e irmãos, ou mesmo amigos/vizinhos? Uma brincadeira de final de semana para contar histórias, organizá-las no tempo e observar trajetórias que se multiplicam em experiências vividas que podem ou não se articular e aproximar! Mas não esqueça do compromisso secreto, muitas fotos com “tudo o que vivo” talvez revelem menos do que poucas fotos feitas com calma, devagar, com intenções fortes.
Sugestões de leitura:
- BERGER, John. Para entender uma fotografia. SP: Cia das Letras, 2017.
- KOSSOY, Boris. Fotografia e História. SP: Ateliê Editorial, 2020.
- Chichico Alkimin fotógrafo. SP: IMS, 2017.