“O dia da felicidade será o memorável dia da emancipação do povo, e o dia da emancipação do povo será aquele em que os grandes forem abatidos e os pequenos levantados; em que não houver senhores nem escravos; chefes nem subalternos; poderosos nem fracos; opressores nem oprimidos; mas em que o vasto Brasil se chamar a pátria comum dos cidadãos brasileiros ou Estados Unidos do Brasil”. (Luiz Gama, Correio Paulistano, 29 de janeiro de 1867).
Brasil, 1840. Cidade de Salvador. Menino negro de dez anos, filho de uma africana livre e de um fidalgo de origem portuguesa, é vendido pelo próprio pai. Seu nome é Luiz. A mãe, procurada pela polícia, fugiu logo após o seu nascimento, envolvida em sedições antiescravistas. Embarcado para o Rio de Janeiro, passa por Santos e Campinas, até chegar à cidade de São Paulo, lugar em que trabalha em diversas funções e aprende a ler e a escrever. Aos 18 anos, já letrado, descobre a ilegalidade de sua condição escrava e foge da casa de seu proprietário. Conquista oficialmente a liberdade, ingressa no serviço público, estuda sozinho e se torna advogado autodidata. No exercício do Direito liberta mais de 500 escravizados. Atua também como jornalista, funda jornais, publica livros, artigos, poemas… Morre aos 52 anos, em 24 de agosto de 1882. Seu enterro, amplamente noticiado, parou a cidade de São Paulo. Ele, um homem negro, num país ainda em regime de escravidão, contra a qual lutou ferrenhamente até o derradeiro suspiro, foi reconhecido e prestigiado nas ruas da capital por gentes de todas as classes sociais. Poderia ser um roteiro de ficção, mas é a história real de Luiz Gonzaga Pinto da Gama, um dos maiores nomes do abolicionismo brasileiro.
Até os 10 anos de idade, o menino Luiz corria livre pelas ruas da cidade onde nascera, sem saber que um dia seria vítima de quem devia lhe proteger. Transformado em escravizado por seu pai, por causa de dívidas de jogo, foi colocado num navio rumo à cidade do Rio de Janeiro. Ficaria pouco tempo por lá, a má fama dos escravizados baianos, considerados revoltosos demais, fazia temerosos os senhores de sua má influência. Ninguém queria comprá-los. Vendido no lote de um comerciante paulista, com mais de cem outros escravizados, o pequeno Luiz chegaria ao porto de Santos e de lá seguiria a pé até a cidade de Campinas para ser novamente recusado. Os longos quilômetros percorridos o levariam, finalmente, à casa do comerciante Antônio Pereira Cardoso, no centro de São Paulo. Ali, na Rua do Comércio, nº 2, pertinho do Largo da Misericórdia, conheceria o jovem Antônio Rodrigues do Prado Junior, hóspede de seu proprietário, que lhe ensinou a ler e a escrever.

“Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso”1.
Em carta ao amigo Lucio Mendonça, escrita em 25 de julho de 1880, ele conta detalhes de sua vida e, assim, ficamos sabendo que após fugir, Gama se tornou soldado raso, passando depois a escrivão, função que lhe colocaria em contato direto com a escrita e aprimoraria o seu conhecimento sobre as leis. Aos 20 anos, ele tentou ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Foi recusado, por motivos não conhecidos, mas que podemos imaginar sem muito esforço… Apesar dessa recusa, das muitas que teve ao longo de sua existência, o jovem Luiz podia ser visto como ouvinte em aulas na faculdade, tomava livros emprestados aos amigos que fez ao longo de sua mocidade, circulava pela cidade conhecendo gente, trocando ideias, e escrevendo muito, sempre.
Além do interesse pelo Direito, Gama também escrevia para jornais como Correio Paulistano, Gazeta do Povo e Radical Paulistano, e se arriscava na poesia. Saudoso da mãe, a quem procurou no Rio de Janeiro algumas vezes, sem sucesso, escreveu uma linda homenagem em forma de poesia.
Minha mãe

Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que tenho
Dos seus mimosos carinhos.
Quando c’os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.
(…)
Os olhos negros, altivos,
Dois astros eram luzentes;
Eram estrelas cadentes
Por corpo humano sustidas.
Foram espelhos brilhantes
Da nossa vida primeira,
Foram a luz derradeira
Das nossas crenças perdidas2.
Sobre sua mãe, sabemos o que contou naquela carta enviada ao amigo Lúcio Mendonça:
Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (Nagô de Nação) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.
Luiz Gama usava o espaço da imprensa, principalmente, para fortalecer a sua luta contra a escravidão, tal como fizera sua mãe. Na introdução de seu livro Com a palavra, Luiz Gama, a professora Ligia Ferreira da Unifesp, estudiosa de sua vida e obra, destaca que ele foi “um dos raros intelectuais negros brasileiros do século XIX, o único autodidata e o único, também, a ter vivido a experiência da escravidão”.
Ora como jornalista,
“Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam; que esta cor convencional da escravidão, […] à semelhança da terra, ao través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade” (Gazeta do Povo, 1º de dezembro de 1880).
Ora como advogado,

Gama esteve sempre na linha de frente das lutas abolicionistas
Dos muitos que ajudou a libertar, um caso particular chama a atenção, porque foi a maior ação coletiva de libertação de escravizados de que se tem conhecimento. O caso ficou conhecido como “Questão Netto” e aconteceu entre os anos de 1869 e 1876. Conta-se que Luiz Gama lia um jornal quando uma notícia lhe chamou a atenção: a disputa judicial entre a viúva e os herdeiros colaterais de um rico comendador português, Manoel Joaquim Ferreira Netto. Era muito comum, naquela época, que os testamentos fossem publicados na íntegra nos jornais das cidades. Ao tomar conhecimento de que o comendador havia alforriado os seus 217 escravizados, Luiz Gama tomou o caminho da serra, rumo à cidade de Santos, onde corria o processo, para saber o que havia acontecido com eles. Ele havia recém adquirido a habilitação para advogar, e assim que chegou, solicitou vistas ao processo e a identificação das pessoas alforriadas.
Através dos nomes e locais onde essas pessoas viviam, Gama descobriu que estavam distribuídas em propriedades nas cidades de Santos, Amparo, Jundiaí, Mogi Mirim, Campinas e Rio de Janeiro. Muito além dos nomes, Gama alcançou idades, origens e histórias de vida dessas pessoas escravizadas. Esse processo judicial foi detalhadamente analisado pelo pesquisador Bruno Rodrigues de Lima, na obra Luiz Gama contra o Império: a luta pelo direito no Brasil da escravidão. Advogado e historiador do direito, Lima nos mostra a tenacidade de Luiz Gama, e sobretudo, a sua engenhosidade para utilizar a lei a favor daqueles a quem foi negado o direito à humanidade. O final do processo aconteceu em 1876 e segundo Lima, foi “um feito sem precedente na história do judiciário do Brasil e das Américas” (Bruno Rodrigues de Lima).
A ligação de Gama com a cidade de Santos, não se resumiria a sua vida de menino e à Questão Netto, o Dr. Luiz Gama voltaria ali outras vezes, quase sempre para atuar como advogado em diversas ações que libertariam escravizados. Abolida oficialmente em 13 de maio de 1888, a escravidão brasileira foi a mais longeva de todas as Américas. No último país a extinguir o regime de trabalho escravista, Luiz Gama vivenciou na pele as agruras do cativeiro. Menino-homem negro, transitando em espaços que lhe eram hostis em busca de alcançar, para outros, a liberdade que garantira para si.
A morte Luiz Gama foi noticiada amplamente pela imprensa, um cortejo de milhares de pessoas percorreu os quase seis quilômetros entre o Brás e o Cemitério da Consolação, onde ele foi enterrado. O escritor Raul Pompéia, grande amigo de Gama, testemunhou o episódio:
“O cemitério estava longe, no extremo oposto da cidade, para as bandas da Consolação. Porém, que o corpo do amigo de todos, como chamavam a Luiz Gama, fosse por todos um pouco carregado. A considerável distância que separa os dois arrabaldes, devia ser percorrida a pé, para que a muitos fosse possível a honra de levar aquele glorioso cadáver” (Gazeta de Notícias, 10 de setembro de 1882).
Segundo Pompéia, atrás do caixão, uma multidão ia se formando, uma banda de música dava o tom ao cortejo em “acordes lacrimosos”. Com emoção e de forma muito vívida, o escritor descreve a cena

“A cidade estava triste. Inúmeras lojas tinham as portas fechadas, em manifestação de pesar: as bandeiras das sociedades musicais e beneficentes da capital pendiam a meio mastro. Apinhava-se o povo nos lugares por onde devia passar o enterro. Às janelas acotovelavam-se as famílias. Em alguns pontos viam-se pessoas chorando. Ia sepultar-se o amigo de todos. – Nunca houve coisa igual em São Paulo, dizia-se nas esquinas. No posto de honra das alças do esquife sucedia-se toda a população de São Paulo. Todas as classes representavam-se ali” (Gazeta de Notícias, 10 de setembro de 1882).
O funeral de Luiz Gama foi um dos maiores da história de São Paulo. Estima-se que cerca de quatro mil pessoas estiveram presentes. A história de Gama virou filme em 2021. “Doutor Gama”, dirigido por Jeferson De, narra a trajetória do advogado dos escravos, como ficou conhecido, da infância aos tribunais. No mesmo ano, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de São Paulo, que alguns anos antes, em 2017, já o havia homenageado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, dando o seu nome a uma sala de aulas. Gama também foi a primeira pessoa negra a ter uma estátua na cidade de São Paulo. No Largo do Arouche, em 1931, foi inaugurado um busto em sua homenagem. Apesar desse reconhecimento, penso que a incrível história de Gama permaneça pouco conhecida em alguns segmentos, principalmente nas escolas.
Recentemente, fiz uma pequena viagem ao litoral. Descendo a Serra, rumo a Peruíbe, pensava no artigo, cujo tema eu já havia escolhido, por sua importância histórica, mas também pela proximidade do 13 de maio. A paisagem ao redor me fez pensar em como seria percorrer aquele caminho a pé, em pleno século XIX…
Imaginei o menino Luiz, pequeno, assustado, chegando ao porto de Santos, junto com os outros cem escravizados, e depois levado para Campinas. Chegando ao meu destino, consulto o Google maps para saber a distância e a duração dessa caminhada. Ele estima algo em torno de 180, 190 km… 43 a 45 horas a pé, a depender do caminho escolhido… Como seriam esses caminhos em 1840, cento e oitenta e cinco anos atrás?

Não conseguia esquecer a imagem daquele menino negro, subindo a serra na mata fechada. O que teria se passado na cabeça do pequeno Luiz? O que se passava em seu coração? Sentiria fome, medo?Saudades de sua mãe, certamente. Rancor por seu pai, que o vendeu como mercadoria, arrancando-lhe a liberdade que era seu direito?
Pensei nisso, mas também pensei em como foi corajoso, como procurou no conhecimento a chave para sua liberdade e para a de muitos outros. Precisou estudar muito para isso, driblando um violento sistema escravista. Penso em como a educação sempre foi e continua sendo fundamental para a superação dos enormes desafios que as pessoas negras, sabidamente, enfrentam nesse país e no mundo.
A história de Luiz Gama, como a de muitos outros abolicionistas negros, homens e mulheres, foi invisibilizada durante muito tempo. O racismo estrutural tentou apagá-las. O movimento negro as resgatou. Recentes episódios de racismo: adolescentes negros perseguidos em shopping, estudantes negros hostilizados em colégios da elite paulistana, uma juíza negra barrada em evento para o qual havia sido especialmente convidada, a cotidiana violência policial vivenciada nas periferias, nos mostram como estamos ainda muito distantes da sociedade que Luiz Gama projetou.
Mais ainda, me fazem pensar, como educadora, sobre a importância de seu legado e de darmos lume à existência de uma personalidade tão importante quanto a de Dr. Gama, sobretudo nas escolas. Lembro também que neste mês de junho, no dia 21, celebramos o seu aniversário de nascimento.
Uma frase retirada pela pesquisadora Ligia Fonseca do jornal Gazeta de Notícias de 25 de agosto de 1882, reforça a tamanha importância da figura de Luiz Gama, e me faz lamentar, profundamente, que ele não tenha visto, em vida, a abolição da escravidão que ele tanto combateu:
“Há como uma história sobrenatural, um romance inverossímil na vida deste homem que se finou deixando após si um rastro de luz”.
Na luta contra o racismo, precisamos de mais luzes, precisamos de mais Luizes…
Para ler:
- FERREIRA, Lígia Fonseca (Org.). Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
- FERREIRA, Ligia Fonseca (Ed.). Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. Edições Sesc SP, 2020.
- DE LIMA, Bruno Rodrigues. Luiz Gama contra o Império: a luta pelo direito no Brasil da Escravidão. Editora Contracorrente, 2024.
Para ver:
- Doutor Gama. 2021. 1h 20min. Direção: Jeferson De. Roteiro: Luiz Antônio.