Na coluna anterior apresentei o contexto que deu origem à Escola Laica do Caminho das Dunas. Agora contarei sobre minha experiência como professora voluntária, trazendo alguns aspectos pedagógicos do trabalho.
O aumento do fluxo de imigrantes foi se tornando cada vez mais flagrante. Todos os dias víamos pessoas circulando a pé pelas rodovias que levavam à Calais e acampamentos surgindo em áreas impróprias para moradia.
Comecei a pensar em como poderia contribuir nesse contexto de crise. Encontrei numa rede social o grupo que reunia os voluntários que animavam a escola e enviei uma mensagem me apresentando. Eles precisavam de professores com experiência de sala de aula.
E foi assim que em outubro de 2015, iniciei meu trabalho como professora voluntária numa construção improvisada, situada em uma das entradas do campo onde moravam as famílias curdas de origem iraquiana.
Nos primeiros dias não havia absolutamente nada nesse “mini galpão”. Cada voluntário que se apresentava trazia materiais escolares, brinquedos e alimentos para que as crianças pudessem fazer um lanche. Nós também não tínhamos nenhuma informação sobre o perfil dos menores residentes no campo. A cada dia chegavam novos rostos, de idades e nacionalidades diferentes.



No primeiro dia de “aula” nos sentamos no chão e trabalhamos com as crianças que apareceram. | Arquivo pessoal.
Considerando o caráter emergencial da situação, constituímos um núcleo com seis professoras do segmento que corresponde aos anos iniciais do Ensino Fundamental no Brasil. Nosso principal objetivo era criar uma organização e uma rotina nesse espaço, para que as crianças e familiares pudessem entender a proposta e aderir ao projeto.
Parecia algo simples, mas não era.
Levamos algumas semanas para compreender a dinâmica do campo e como a escola poderia se inserir da melhor forma nesse contexto de insalubridade, insegurança e hostilidade.
Nos organizamos para que a escola funcionasse de segunda a sábado, com duas horas de atividades nos períodos da manhã e da tarde. Trabalhávamos sempre em duplas e fazíamos nosso planejamento e trocas de informações sobre as crianças e as atividades da escola por e-mail.

Geralmente, contávamos com o apoio de voluntários que estavam de passagem. Essa ajuda era sempre bem-vinda, pois atendíamos uma média diária de quinze crianças com idades variadas. Também começamos a receber doações de livros, materiais escolares e brinquedos.
Além das dificuldades estruturais, notamos nos primeiros encontros que as crianças estavam agitadas e sem referências, correndo por toda parte, gritando, fazendo brincadeiras violentas, com pouca capacidade de concentração e disposição para o diálogo. Entendemos que o desenraizamento e o êxodo geraram traumas profundos, e estávamos lidando com um grupo extremamente vulnerável.
Não sabíamos há quanto tempo as crianças haviam deixado suas casas, muito menos os riscos que correram durante a jornada até Calais, que ainda não era o destino de suas famílias.
Nesse contexto, compreendemos que o objetivo inicial de resgatar as aprendizagens das crianças e estimular a aprendizagem da língua francesa seria apenas uma das vertentes do nosso trabalho pedagógico.
Entendemos que a vocação principal da escola era se tornar um espaço acolhedor, onde as crianças poderiam se sentir seguras para se expressar sobre os momentos difíceis vividos e simplesmente brincar sem medo ou preocupações.
Com o passar dos meses, começamos a desenvolver uma pedagogia própria, que era bastante flexível e adaptada à disposição mental e emocional de cada grupo. Nos dias em que as crianças estavam mais calmas, propúnhamos atividades mais “tradicionais”, relacionadas à aquisição de competências linguísticas, matemáticas e científicas. Em dias mais agitados, trabalhávamos atividades lúdicas, com jogos, desenhos, artes manuais, etc., sempre favorecendo formas de expressão verbais e não-verbais para que pudessem ir processando o choque da migração forçada.



Atividades desenvolvidas na escola | Arquivo pessoal
Notamos que o trabalho gerou bons frutos. Depois de algum tempo frequentando a escola, as crianças estavam mais tranquilas e aptas a participar das atividades. Um clima de confiança foi estabelecido entre o grupo fixo de docentes, crianças e familiares.

Vale destacar que a escola era uma verdadeira Torre de Babel. Os professores falavam inglês e francês, mas as crianças falavam diversas línguas. Algumas falavam inglês e faziam a ponte entre nós. Alguns pais e membros das comunidades também desempenhavam esse papel, principalmente em situações de conflito entre as crianças que necessitavam uma mediação.
A experiência como professora voluntária nessa escola me ensinou muito.
Aprendi a me adaptar a contextos difíceis. Trabalhei grande parte da minha carreira na periferia da cidade de São Paulo e julguei estar à altura do desafio em Calais. Mas nenhuma experiência prévia poderia ter me preparado para o que vivi nesse campo de refugiados.
Além do frio, da chuva, da sujeira, da precariedade e das tensões no ambiente quando o campo começou a ser destruído, tínhamos que lidar com as chegadas e partidas, pois as famílias estavam ali aguardando o momento para passar ilegalmente para a Inglaterra. Me habituei, por falta de opção, a criar vínculos e a suportar as ausências repentinas, sem direito a despedidas. Aprendi um pouco mais a viver no presente, fazendo o melhor possível.
Desenvolvi a resiliência ao me confrontar diariamente com tragédias humanas, principalmente, o descaso com crianças de todas as idades privadas de direitos básicos, como moradia, saúde, educação e cultura em pleno país da Declaração dos Direitos Humanos.



Me tornei mais empática vendo famílias (que poderiam ser a minha ou a sua) forçadas ao êxodo, vivendo em condições subumanas. Me colocar no lugar dessas pessoas ampliou minha perspectiva de humanidade, me fez pensar nas contribuições que posso dar para um mundo mais justo, a partir de ações no meu cotidiano.
Reforcei a minha crença de que cada um de nós tem o poder de transformar a realidade. É por isso que compartilho essa experiência com você que me lê. Para te sensibilizar e inspirar a ser, como diria Gandhi, a mudança que você quer no mundo.
Por ora me despeço com essa reflexão. Na próxima coluna, conversaremos sobre como essa experiência se relaciona, ou pode se relacionar, com a realidade brasileira. Até lá!


